sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Outros Caminhos de Santiago

Não foi um chamamento de fé que nos levou a partir em direção a Santiago noa ano de 2018, foram outros caminhos, diferentes desafios e outras motivações, que nos fizeram seguir nesta jornada. A peregrinação é sempre um estímulo pessoal que nos leva numa procura pela nossa devoção e que acaba sempre por constituir uma viagem à nossa própria interioridade e aos nossos próprios valores. Por mais ou menos devotos que possamos ser, esta cidade é sempre um palco de crença e de fé, que torna especiais todos os valores que possamos querer celebrar. 

E, neste caso, a nossa viagem foi sobretudo uma celebração dos valores da amizade, a comemoração de dezenas de anos de partilha, de bons e maus momentos... e também, e uma vez mais, uma forma de nos aproximarmos daqueles que já não estão connosco, mas que nos acompanham ainda, desta vez, como sempre nos acompanharão.


Santiago de Compostela é a Cidade Sagrada para onde convergem milhares de peregrinos, vindos de todo o mundo, guiados pela fé e pela devoção. Mas, mesmo para os menos crentes, existem muitas outras razões que justificam uma visita a esta cidade. E com maior ou menor devoção será sempre bem percetível uma carga história e sensorial que a cidade transmite e que nos motiva a todos, fazendo-nos sentir, mesmo aos mais descrentes, como se fossemos verdadeiros peregrinos. 

É assim, dessa forma inspiradora, que a cidade nos recebe, permitindo o avistamento à distância das altas torres da catedral, guiando-nos nos últimos metros da nossa caminhada. E até aqueles que chegam de carro não deixam de ter essa mesma sensação, de estarem a ser guiados por um farol espiritual que nos pode levar até às ossadas do Santo, se for essa a nossa escolha, e que, certamente, nos levará também a descobrir uma maior proximidade com nós próprios. 
Foi assim que juntámos um grupo de amigos de infância com as respetivas famílias e partimos até à Galiza para um fim-de-semana grande, que aproveitava o nosso feriado de 5 outubro do ano de 2018. Um percurso que nos levaria até à espiritualidade que ali se respira, e que é bem patente nos símbolos que representam os valores e as crenças da Cidade Santa, mas que iria ainda levar-nos a conhecer a história e a arquitetura de uma cidade que nasceu na Idade Média em torno da sepultura de um Santo, e que, rapidamente, se tornou num dos principais polos de peregrinação de todo o mundo. 

Além de tudo isto, esta viagem iria também proporcionar-nos o usufruto daquilo que a cidade tem para oferecer, para além da sua religiosidade, como a extraordinária gastronomia que ali se pode experimentar. 

E mais importante do que tudo isso, esta visita iria ainda servir para desfrutarmos, uma vez mais, da companhia uns dos outros, celebrando, dessa forma, a amizade que nos tem unido durante as nossas vidas, e que seria como que abençoada por esta Cidade Sagrada.


Pela cidade adentro

Santiago de Compostela é sobretudo um dos mais importantes destinos de peregrinação cristã de todo o mundo, mas é também uma bonita cidade histórica, capital da região da Galiza, e cujo Casco Viejo foi considerado pela UNESCO como Património Mundial.

O seu centro histórico é bastante pequeno o que permite que o possamos percorrer a pé com grande facilidade. Foi o que fizemos nestes dois dias em que a visitámos a cidade, deambulando pela teia de ruelas que vão desembocando nas praças onde se erguem as igrejas e os monumentos, que são as principais atrações desta cidade.

No mapa seguinte representam-se os principais polos de interesse, bem como os percursos pedonais que fomos palmilhando durante a nossa visita:
Começámos por encontrar um parque de estacionamento fora da cidade, porque seria uma missão impossível tentar estacionar na cidade velha. Apesar disso, o parque escolhido, que está assinalado no mapa, fica relativamente próximo do Casco Viejo, bem perto dos edifícios da Iglesia y Convento de San Domingos de Bonaval e do Museu do Povo Galego, que formam um conjunto arquitetónico bastante interessante, onde fizemos a nossa primeira paragem.
Seguimos depois diretamente até a um dos pontos de interesse da cidade, o Mercado de Abastos, onde voltaríamos no dia seguinte, com mais tempo e com outros planos.
Entrámos depois lentamente no labirinto de ruas que formam o centro histórico, começando na Praza de Cervantes e descendo a Rúa do Preguntoiro, passando por alguns dos principais pontos de referência da cidade.


Ao longo dos percursos que fomos fazendo, fomos chegando a ruelas ainda mais apertadas, cheias de lojas e de restaurantes, entrando definitivamente no coração do centro histórico da cidade, onde passamos pela Rúa da Raíña e a Rúa Nova, e atingimos depois a Praza do Toural... sempre usufruindo de um ambiente encantador que vamos descobrindo em cada recanto, cheio de jovens e caminheiros por todo o lado.



Nesta caminhada, um dos pontos de paragem obrigatória é a Praza das Praterías, uma bonita praça marcada pela presença da Fonte dos Cabalos, ao centro, por um edifício clássico, e bastante bonito, de um dos lados, e pela grande escadaria que dá acesso às portas posteriores do edifício da catedral.

Logo de seguida, no topo da escadaria e ainda colada ao contorno da Catedral, estende-se uma praça enorme, a Praza da Quintana. Às vezes esta praça está relativamente calma, mas tem alturas em que se juntam multidões em fila para comprar o ingresso para visitar a Catedral... penso que os peregrinos têm uma outra porta e de acesso direto, mas nós tivemos mesmo que ir para a fila para contratar uma visita guiada.

Voltámos depois de novo às ruelas do centro histórico até atingirmos o ponto para onde todos convergem, dos turistas aos peregrinos, a Praza do Obradoiro.

Trata-se da maior praça da cidade, onde se erguem o Paço de Raxoi, a atual sede do governo municipal da cidade e também da Junta Regional da Galiza, e também o Parador da cidade.

Mas aquilo que mais marca, não só a praça do Obradoiro, mas toda a cidade de Santiago, é a magnífica Catedral de Santiago de Compostela, um dos principais símbolos cristãos de toda a Espanha e um extraordinário monumento em honra do santo padroeiro desta cidade. 
Passámos o final da tarde a observar o ambiente fantástico que se sente na Praza do Obradoiro, onde os turistas se juntam, e por lá se deixam ficar, e onde todos os peregrinos chegam, alguns deles depois de vários dias a caminhar.

 
Ao final de uma paragem demorada, para melhor captarmos o espírito que ali se faz sentir, continuámos o nosso percurso, desta vez ao longo dos edifícios da universidade e até ao Convento de S. Francisco, dedicado a São Francisco de Assis, que terá vindo em peregrinação a Compostela no século XIII. Além da igreja destaca-se também, em frente à sua fachada, um cruzeiro com esculturas feitas em honra de São Francisco.
Voltando à grande praça da catedral, atravessámos um arco que dá acesso à Praza da Inmaculada, onde se encontra o edifício da Escola Universitaria de Traballo Social e, logo a seguir, chegámos à Praza da Quintana, que nos volta a colocar de novo junto à Praza das Praterías.

Já num outro dia, saindo do centro da cidade, desta vez, já de carro, fomos ainda visitar a igreja Colegiada de Santa Maria de Sar e respetivo museu, e seguimos ainda até à Cidade da Cultura.

Trata-se de um complexo arquitetónico, com polos culturais e de entretenimento, que se localiza no Monte Gaiás, a cerca de 5 km do centro da cidade de Santiago. 

Com uma arquitetura moderna, da autoria do arquiteto Peter Eisenman, mas com uma dimensão gigantesca e já com sinais de degradação, e por se tratar de um local com aspeto de estar quase abandonado, este complexo revela-se como uma espécie de elefante branco... raro, monstruoso e inútil.



A história e a lenda de Santiago 

Esta é uma cidade que nasce em torno do túmulo do seu Santo, Santiago Maior (ou São Tiago Maior), um dos 12 apóstolos de Jesus Cristo. 

Após a morte de Jesus, Santiago participou, com alguns dos outros apóstolos, no núcleo da Igreja de Jerusalém, e foi-lhe dada a missão de evangelizar os territórios da Hispânia. Foi assim que partiu da Palestina num barco de transporte de ouro e estanho com destino à península ibérica, onde iniciaria a sua pregação, participando na evangelização dos povos ocupantes do território peninsular espanhol, concretamente da região do Noroeste, conhecida então como Gallaecia.

Mais tarde, no seu regresso à Terra Santa, em torno do ano 42 dC, Santiago voltou a fazer parte do núcleo da Igreja primitiva de Jerusalém e, por isso, acabou por ser perseguido pelos romanos e decapitado por ordem de Hérodes Agripppa, neto de Heródes - O Grande, tornando-se no primeiro apóstolo a transformar-se em mártir.

Depois da decapitação o seu corpo foi recolhido por dois dos seus discípulos, Atanásio e Teodósio, que o levaram numa barca que navegou até Espanha, chegando ao porto de Iria Flavia (onde fica atualmente a vila de Padrón, na Galiza).

Os dois discípulos, juntamente com outros fiéis que, entretanto, se juntaram a eles, depositaram o corpo do seu mestre junto a uma rocha, e foram visitar a poderosa Rainha Lupa, que dominava toda aquela zona, e pediram-lhe para que lhes fosse dada uma terra onde pudessem sepultar dignamente os restos mortais de Santiago. A Rainha fingiu ceder ao seu pedido e disse-lhes: “Ide àquele monte e buscai dois bois que atrelareis a este meu carro e levai o vosso amigo e vosso mestre para o sepultardes aonde queirais”. Mas Lupa sabia que, naquele pousio, não havia bois mansos, mas apenas touros bravos.

Mas conta a lenda que, por milagre, os touros bravos haveriam de se transformar em bois mansos e, desta vez, a Rainha ficou convencida da autenticidade da missão religiosa dos discípulos e permitiu que os bois seguissem o seu caminho, transportando o corpo do Santo. Onde eles parassem, seria o local da sepultura do mestre. Foi nesse local, no monte Libredón, que os discípulos construíram a primeira capela dedicada a Santiago, e ali se fixaram, tendo vivido e morrido junto do túmulo do Apóstolo.

Reza ainda esta lenda que, bem mais tarde, oito séculos depois, já no ano 813, um eremita chamado Paio terá contado ao Bispo Teodomiro, de Iria Flavia, que, durante a noite, tinha observado luzes que irradiavam da pequena capela e que iluminavam o céu com uma estranha luminosidade, como se fossem estrelas que ali brilhavam. O Bispo foi ao local com uma numerosa comitiva e encontrou um sepulcro de mármore com as relíquias do Apóstolo e dos seus discípulos. 

O local foi batizado com o nome de Santiago e com uma referência à aparição da estranha luminosidade, que transformou aquelas terras num campo da estrelas ou, em latim, campus stellae, ou ainda, Compostela. 

O local transformou-se rapidamente num destino de culto e, no ano de 872, face a um número crescente de peregrinos, o Rei Afonso III, manda construir uma igreja majestosa no lugar da antiga capela. 

Durante vários séculos a igreja foi sofrendo sucessivas alterações, tendo passado por incêndios que quase a destruíram. As intervenções efetuadas ao longo do tempo permitiram a sua reconfiguração arquitetónica, com a mistura de vários estilos, que foram alterando a traça original. Os trabalhos de recuperação foram também ampliando o edifício e a igreja transformou-se na catedral imponente que hoje podemos encontrar.
Os restos mortais do apóstolo Santiago estão atualmente guardados num relicário que se encontra depositado sob o Altar Mor da Catedral. Mas a sua autenticidade é algo que sempre gerou acesos debates, tendo, por isso, dado origem a meticulosas investigações. Os estudos realizados conseguiram demonstrar (através da análise do Carbono 14), que se tratam de ossadas do século primeiro. Foi ainda demonstrado que incluem ossos de três pessoas diferentes, mas não foi possível determinar a quem pertenciam, por falta de quaisquer referências de ADN. 

Assim, a versão oficial da igreja é que se tratam das ossadas do apóstolo Santiago, juntamente com as dos seus dois fiéis mais dedicados, Atanásio e Teodósio, que terão sido sepultados juntamente com o seu Mestre... e esta é uma versão que não pode ser provada, e só mesmo a fé de cada um a poderá validar. 

(Esta é uma adaptação livre das várias versões da lenda, tendo em conta aquilo que li e a versão que nos foi contada pela guia que nos acompanhou na visita ao museu e à catedral). 

Atualmente, os peregrinos atravessam a catedral no final do seu caminho e fazem duas romagens obrigatórias - Uma paragem para reflexão junto ao relicário onde estarão guardadas as ossadas do Santo - E uma passagem no altar por detrás da figura de Santiago, parando para pousarem as mãos sobre o manto que cobre os ombros da estátua do Santo.
Duas últimas referências ao interior da Catedral. Primeiro, para mencionar a existência de um enorme queimador de incenso, feito em latão e banhado a prata, o chamado Bota Fumeiro, que é suspenso ao teto da abóbada por cabos e roldanas, que o fazem oscilar pendularmente, espalhando, dessa forma, o aroma  libertado pela queima de ervas e incenso. Assim, e à medida que que o Bota Fumeiro vai oscilando, os seus aromas vão purificando o ar daquele espaço, afastando os maus cheiros que, naturalmente, os peregrinos vão trazendo (ver vídeo oficial, gravado numa missa do peregrino).

A outra referência no interior da Catedral é a Porta Santa ou Porta do Perdão. Aparentemente seria só uma das sete portas existentes na Catedral, mas, na realidade, esta é uma porta bem diferente, com toda uma mística e um significado muito especiais. Esta porta só é aberta durante os anos santos, também chamados de anos Xacobeo, e os fieis que passarem por ela podem receber uma indulgência especial, com o perdão de todos os seus pecados.

Porém, será necessário, cumprir uma série de condições… apresentar a Compostela (o que obriga aos tais 100km de peregrinação), participar numa missa, fazer uma oração, comungar, e terá ainda que se confessar e comungar em qualquer outra igreja, até 15 dias depois desse dia, ou tê-lo feito nos 15 dias anteriores. Apesar das exigências serem muito ambiciosas, durante os anos Santos, existem todos os dias imensos peregrinos que cumprem estes rituais e obtêm, dessa forma, o perdão para todos os seus pecados.

Mas neste ano de 2018 a porta estava fechada e não haveria forma de perdoar pecados... o ideal será mesmo tentarmos pecar o menos possível.
         
O próximo ano santo será em 2021, no qual a porta estará aberta durante todos os dias do ano... por isso, pecadores, marquem já este evento nas vossas agendas.

(Depois desta visita à Catedral, haveríamos de voltar duas vezes no ano de 2022, o qual, devido à pandemia de Covid 19, haveria de ser também considerado como Ano Santo. Numa destas vezes chegámos à cidade como peregrinos, vindos em caminhada desde Padrón, e pudemos vivenciar mais de perto toda a mística associada aos Caminhos de Santiago)


Os verdadeiros Caminhos de Santiago e os seus símbolos

O Caminho de Santiago tem sete rotas históricas: o Caminho Francês, o Caminho do Norte, a Vía de la Plata, a Rota Marítimo Fluvial, o Caminho Inglês, o Caminho Primitivo e o Caminho Português. Tem ainda algumas variantes e o Caminho de Finisterra e Muxía, que deve ser percorrido no sentido inverso, entre Santiago e o mar.

Este caminho, chamado como “Português”, não se trata de um único trilho, mas inclui todos os trajetos assinalados com origem no território de Portugal.

A sinalização dos caminhos é feita com setas amarelas associadas à imagem da Concha de Vieira, o seu símbolo principal, que pode aparecer de duas formas. Ou com a sua imagem original, e com a Cruz de Santiago, marcada a vermelho. Ou  então pode ser representada esquematicamente, de forma estilizada, em tom de amarelo sobre um fundo azul.


A gastronomia local

Quando um grupo de amigos, como o nosso, se junta para celebrar a amizade, significa que não será dispensada uma tarde ou um serão sentados à volta de uma mesa, combinando a degustação da boa gastronomia, com as tertúlias que vão fluindo num ambiente que é sempre de boa disposição, e numa onda de paródia, que nos chega a fazer rir até às lágrimas.

E Santiago não poderia ser diferente e, não obstante toda a sua espiritualidade, não renegámos os prazeres da carne (ou, neste caso, do peixe), e programámos um roteiro gastronómico com duas romagens quase religiosas - o Mercado de Abastos e a Casa Marcelo - duas preciosidades.

Mas antes vou ainda referir a curiosidade de ter encontrado, bem no centro da cidade, uma queijaria que poderia ser o patrocinador oficial deste blog. Acontece, porém, que não se tratam de familiares meus, porque o nome que aparece nos queijos não pertence a uma família de queijeiros, mas sim à aldeia onde é feita a sua produção. Ainda assim fica a curiosidade e a foto.

No dia em que programámos almoçar no Mercado de Abastos chegámos bem cedo, pouco depois das 8h, quando as bancas mal tinham acabado de abrir. Este mercado é uma das atrações da cidade pela oferta, perfeitamente fantástica, que apresenta. Percorremos os vários tipos de bancas e escolhemos algumas iguarias da vasta seleção que o mercado oferece. Apesar da variedade de carnes, peixes e legumes, concentrámo-nos nas bancas de marisco vivo, principalmente de bivalves, oriundos das Rias Baixas, e comprámos várias porções de ameijoas, lingueirões, lagostins, sapateiras e zamburiñas, umas pequenas vieiras que se haveriam de revelar uma autêntica preciosidade.

De seguida fomos ao restaurante Mariscomanía, entregámos as iguarias que tínhamos comprado e marcámos uma hora para virmos almoçar. O restaurante está num dos corredores do mercado e é formado apenas por uma barra corrida, ou balcão, e algumas mesas no interior. O marisco que entregámos foi depois confecionado na cozinha do restaurante e foi-nos servido por um custo de 5€ por pessoa. O preço final não fica barato, desde logo porque o marisco, com aquela qualidade, nunca poderia ser muito barato. Depois porque há ainda que acrescentar o custo das bebidas, do pão e das sobremesas, que o restaurante nos cobra. Mas a qualidade da refeição é de tal forma elevada, que ficamos mesmo com a sensação de que nunca tínhamos provado marisco tão fresco e tão saboroso.
Começámos por umas ameijoas, que eram enormes e deliciosas, passámos depois para uns lagostins e para umas sapateiras. Tudo ao natural, nem maionese havia, e ainda assim a sapateira foi logo considerada por alguns como o prato top da refeição. 

Mas a mim, o que realmente me encantó, foi o que veio depois - uns ligueirões enormes e suculentos e, para terminar em beleza, umas zamburiñas preciosíssimas... porsupuesto.
Acabámos em festa, com o que comemos e o que bebemos, num final de tarde fantástico... a menos de um trambolhão inusitado que dei em pleno mercado, quando a cadeira em que estava sentado (uma cadeira alta, das de comer ao balcão) se desintegrou completamente. Caí redondo no chão de lajetas, sem saber como é que escapei apenas com uma pequena escoriação num cotovelo. Levantei-me num ápice e recebi uma enorme ovação de todos os clientes do mercado. Agradeci e voltei às zamburiñas, antes que arrefecessem... vale, vale.

Mas o prato forte da visita gastronómica à capital galega era outro e estava perfeitamente identificado, a Casa Marcelo. A pouco mais de 100 m da catedral, a Casa Marcelo é um restaurante com um ambiente completamente informal, mas com uma cozinha brilhante, direcionada sobretudo para os pratos de peixe e de marisco.

Numa outra crónica deste blog apresento a descrição da experiência vivida na Casa Marcelo, tal como de uma outra visita que fizemos a este restaurante em 2022, que pode ser visto através do seguinte atalho: Casa Marcelo - Uma Pérola da Gastronomia Galega


Mais tarde, o próprio fim-de-semana também chegaria ao fim. Para contemplar a cidade uma última vez, já em tom de despedida, podemos sempre visitar o Parque da Alameda, já fora do Casco Viejo, e percorrer a zona verde que se estende ao longo de uma pequena colina, até ao miradouro com a vista mais privilegiada sobre a cidade velha e a Catedral.
Despedimo-nos assim da cidade com uma satisfação de ver cumpridos os objetivos. Porque desfrutámos da melhor oferta gastronómica da cidade e ficámos encantados. Porque conhecemos o seu casco velho e os principais monumentos, que nos inspiraram a todos. Porque conseguimos captar a mística de uma cidade de peregrinos, que nos terá levado a refletir um bocadinho mais sobre a fé e sobre os valores que nos movem.

E, acima de tudo, cumprimos o objetivo de celebrar de novo a nossa amizade, ficando ainda mais próximos uns dos outros, e dos amigos que, embora ausentes, nunca deixaram de estar connosco.


(Esta crónica é dedicada aos nossos amigos João Carlos, Mitó e Beatriz, que sempre nos acompanharão). 


Outubro de 2018
Carlos Prestes

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Galiza

Foram várias as visitas que fui fazendo à região do Norte de Espanha, algumas delas até em deslocações de trabalho, mas só muito mais recentemente, a partir de 2018, é que tive oportunidade de conhecer com alguma profundidade esta região da Galiza.

Só nessa altura pude perceber a importância do conceito associado aos Caminhos de Santiago, com abordagens mais ou menos religiosas, que vão motivando milhares de pessoas na busca de uma inspiração, por vezes divina, mas que, tantas outras vezes, é apenas uma inspiração pessoal, levando cada um de nós a refletir sobre a nossa própria forma de encaramos os caminhos da vida.

De um modo ou de outro, é sempre uma bênção chegarmos a um local que nos acolhe calorosamente como acontece na Cidade Santa de Santiago, mesmo não sendo peregrinos, essa sensação fica bem evidente, deixando-nos sempre mais sensíveis às coisas que nos rodeiam.

Foi assim que fizemos algumas visitas a Santiago de Compostela, aproveitando tudo aquilo que a cidade tem para nos oferecer, da sua religiosidade à sua vivência de cidade universitária, da sua imagem marcada pelos traços medievais, à melhor gastronomia que já pudemos experimentar... tudo isto faz de Santiago uma cidade que já nos parece ser nossa.

Mais tarde, já depois de algumas visitas a Santiago, resolvemos explorar também outros locais de interesse nesta região espanhola, aproveitando para conhecer outras cidades de referência, desde logo a cidade da Corunha, uma das mais importantes desta zona. E aproveitámos também as visitas às praias de Vigo e às extraordinárias Islas Cíes, mas também a toda a Costa de la Muerte, onde o mundo era suposto acabar, bem na ponta de Finisterra.

Por fim quisemos também incorporar o verdadeiro espírito de peregrinos e assumimos fazer um troço do verdadeiro Caminho de Santiago, numa busca pessoal por uma espiritualidade, tão difícil de alcançar, mas que ali nos pareceu estar mais perto. 

As crónicas seguintes registam as experiências vividas em cada uma destas etapas por terras da Galiza e seguem os trilhos aproximados que estão representados neste mapa:                          








sábado, 22 de setembro de 2018

Berlengas - Da deceção à surpresa


Há já vários anos que queria visitar o arquipélago das Berlengas ou, pelo menos, a sua ilha principal, a Berlenga, mas, só agora, em setembro de 2018, tomei a iniciativa de procurar um operador local e reservar uma viagem até à ilha. 

Durante a época alta existe um barco grande, com lotação para quase 200 pessoas, o Cabo Avelar Pessoa, que faz a travessia duas vezes por dia, onde se prevê uma viagem mais protegida das ondas. Mas, em alternativa, existem outros operadores turísticos, sediados em Peniche, que oferecem viagens até à ilha em barcos mais pequenos e um pouco mais rápidos, mesmo fora da época alta. 

Os sites desses operadores não podiam ser mais apelativos com as suas fotos promocionais, oferecem um dia fantástico por locais paradisíacos... disso não parece haver dúvida.
    
As paisagens anunciadas são de tal forma extraordinárias, que me cheguei a questionar como é que foi possível ter demorado tanto tempo para vir conhecer estas preciosidades... e lá fiz a nossa reserva com enorme entusiasmo - (reservámos através do 917 300 300 - reservas@berlengatur.com).

Na escolha do dia para visitar a Berlenga é necessário ter em atenção as condições do mar e do clima. Em relação ao mar, as operadoras destas viagens dão-nos uma informação razoável, antecipando se iremos ter uma travessia tranquila, ou se vamos ser fustigados pelas vagas. Quanto ao clima vamo-nos orientando pelos sites da especialidade, como o do IPMA ou do AccuWeather, com a convicção de que teremos selecionado um belo dia de sol. 

E foi assim que, no dia escolhido, saímos de casa cheios de expectativas, atravessando Lisboa com um céu totalmente limpo e uma previsão de máximas de 35º.

Mas, pouco depois de Torres Vedras, fomos surpreendidos por uma leve neblina que se começou a adensar à medida que nos aproximávamos de Peniche. À chegada já estávamos sob um enorme e denso “capacete” de nuvens e uma cacimba que nos molhava as t-shirts e nos fez vestir os ligeiros abafos que tínhamos trazido para uma eventualidade. 

Nos quiosques das empresas operadoras, onde fomos levantar os bilhetes, a boa disposição das funcionárias não condizia com o cinzento do céu nem com a neura que se começava a instalar. E foi então que ouvimos uma das frases mais useiras na região de Peniche, e que até pode dar alguma esperança aos mais otimistas – “Isto hoje ainda abre”. E, pior ainda, porque nos deixa invejosos – “Ontem também estava assim e ficou um dia espetacular”. E há mesmo quem nos tente consolar, dizendo – “É bem melhor este fresquinho do que aquele calor todo lá para Lisboa”. 

Mas não tivemos outro remédio do que seguir em frente, e feitas as démarches de embarque, cheios de esperança de que ainda "pudesse abrir", fizemo-nos ao mar na direção de uma ilha que, naquele dia, nem imaginávamos onde é que pudesse estar no meio daquela neblina toda. Felizmente estava “mar chão” e, ao final de 45 min, que é o que dura a viagem de cerca de 11 km, a levar abanões e já com o estômago todo embrulhado, ficámos felizes a imaginar como é que seria se o mar não estivesse “chão”. 

E lá chegámos à ilha, a tal das imagens paradisíacas... constatando que “ainda não abriu”, deixando-nos completamente dececionados com o que ali nos surgia.
Esta é uma imagem que aqui quero deixar porque ninguém vende viagens às Berlengas com fotos como esta, mas, na realidade, este é o cenário mais expectável. Porque Peniche é mesmo assim (e eu até conheço bem a cidade e vou lá muitas vezes, por isso nem sei como é que me fui iludir com previsões ou esperanças de que iria abrir). Peniche é o único local onde faz 20º, enquanto todo o país é assolado por ondas de calor que superam os 40... o que é ótimo, mas nessas alturas, não quando queremos ir até às Berlengas para um dia de veraneio. 

Por isso, quem quiser fazer esta viagem não se iluda com as condições climatéricas previstas e muito menos com o facto de estar um dia de sol em todo o país. Peniche é único, é a terra da cacimba, onde se usam blusões de penas em pleno agosto. Quem conhece sabe que estou a dizer a verdade e, quem não conhece, não pense que estou a exagerar, porque não estou. Por isso vai ser muito difícil - é possível, mas é raro - conseguirmos ver as imagens de que estamos à espera, com aquele mar de um azul quase incandescente. 

Mas nem tudo foram más notícias no dia da nossa visita, porque as Berlengas sofrem ainda de um outro flagelo, mas que não nos afetou. É que, na época alta, o Cabo Avelar descarrega quase 400 pessoas nas duas travessias matinais, a juntar ainda a mais umas 100 a 200 que são transportadas pelos barcos das outras operadoras, pelos circuitos de mergulho ou de pesca desportiva e mesmo pelos barcos particulares. Tudo junto, o que acontece sobretudo no período entre as 13 e as 16 horas, concentra qualquer coisa como 500 a 600 pessoas. Como vão perceber, o local é bastante pequeno e, com 500 pessoas, deve ficar insuportável, e só como exemplo mostro-vos uma foto da única praia da ilha com um pequeno areal, para tentarem imaginá-la com umas - vamos dizer - 200 pessoas (imaginando os outros 300 a passear pela ilha). 
Imaginam como é que ficaria?... pois é, certamente uma tremenda confusão. Por isso referi que nem tudo foram más notícias na nossa viagem às Berlengas, naquele dia 22 de setembro, porque a partir de dia 15 já tinham acabado as viagens do Cabo Avelar e a ilha já estava com pouquíssima gente. Assim, depois da deceção inicial, começámos a ser surpreendidos positivamente. Reparem que, não só a praia e a própria ilha estavam semi-desertas, como foi uma grande surpresa quando constatámos que as águas eram bem azuis, apesar daquele céu coberto de nuvens. Não sei bem o que é que acontece, mas o azul deve ser tão vivo que, mesmo em dias cinzentos, a cor acaba por sobressair. 


Assim, e depois de explicados os prós e os contras de qualquer viagem às Berlengas, vou agora entrar nalguns pormenores da nossa visita à ilha no dia 22 de setembro de 2018. 

O arquipélago das Berlengas, fica a cerca de 10 km a Oeste do Cabo Carvoeiro, em Peniche, e é constituído pela ilha da Berlenga, as Estelas e os Farilhões-Forcados, e está classificado como Reserva Natural desde 1981. 

Dentro da ilha da Berlenga, existem sobretudo dois polos principais: o cais de embarque, onde aportam todas embarcações que vêm de Peniche; e o Forte de São João Baptista - ambos localizados como se representa neste mapa da ilha: 
À chegada, os barcos deixam-nos no cais de embarque, junto à enseada onde se forma a praia principal, que pode ser apelativa para fazermos logo a primeira paragem mais demorada. 

Mas, na minha opinião, não nos devemos deixar ficar por ali muito tempo. Devemos partir logo à descoberta da ilha, percorrendo o caminho que nos leva até ao Forte, porque, à tarde, voltaremos a estar outra vez nesta mesma zona. É que a nossa presença na ilha era de cinco horas, nem é muito nem é pouco, mas se estiver agradável para uns mergulhos na praia, o tempo tem de ser otimizado. 

A saída do cais, já a pé, faz-se através de uma rampa muito íngreme que nos leva até ao topo da ilha, onde fica o Farol da Berlenga, que deveria assinalar a presença do arquipélago de forma imponente, orientando os navegantes, mas que, neste dia, estava completamente ofuscado pela neblina, mal se deixando ver. 
Esta volta pela Berlenga, primeiro por um caminho pavimentado e, depois, por trilhos de terra e de pedra, leva-nos até à zona mais a Sul da ilha e, depois, até ao Forte, num percurso que demorará menos de uma hora, num passo normal e sem grandes pressas. No final terminamos com uma descida de 220 degraus, sempre com a vista ampla sobre a baía onde, numa pequena ilha, se ergue o Forte de São João Baptista. Esta será uma das vistas mais bonitas da ilha, mas, claro, só mesmo quando o sol brilha. 

A imagem desta descida costuma ser o ex-libris das Berlengas, com o caminho de acesso ao Forte, que é feito por uma ponte de arcos, rodeada por águas de um azul vivo... mas, neste dia, a paisagem era bem diferente e bastante dececionante. 
Ainda assim, e mesmo antes de visitarmos o Forte, quisemos experimentar a água e dar uns mergulhos, porque alguns dos locais desta zona são bastante bonitos e muito apelativos, apesar dos 16º dentro de água e dos 18 cá fora. 
Chegámos depois ao Forte, subimos ao terraço e contemplámos a vista envolvente. Uma vez mais seria uma paisagem de sonho num dia com sol. 
O primeiro edifício existente naquele local, ainda no século XVI, foi um Mosteiro da Ordem de São Jerónimo, que oferecia assistência aos marinheiros que ali passavam e aos náufragos. Durante um século da sua existência o mosteiro foi atacado repetidamente por piratas, o que levou ao seu abandono e à degradação do edifício.

Já no século XVII, o rei D. João IV mandou construir o Forte de São João Baptista, no local onde existiam as ruínas do mosteiro, utilizando as pedras recuperadas da demolição dessa ruína. O novo edifício passou então a ser uma fortificação para a defesa daquele local, dada a sua posição estratégica. 

No século XIX o Forte deixa de ser uma instalação militar, e passa a servir de apoio à atividade dos pescadores da região. 

Por fim, e até à atualidade, o Forte passou a funcionar como casa-abrigo da Associação dos Amigos das Berlengas, e é um dos poucos locais de alojamento do arquipélago, com alguns quartos e um serviço de restaurante e mini-mercado, mas tudo sem grandes condições, se pensarmos em padrões de alojamento turístico (desde logo, a ilha tem um problema difícil de resolver, que é a água doce, que é pouquíssima, obtida a partir da chuva e armazenada numas cisternas que ficam a Sul da ilha). 

As operadoras turísticas promovem, para além da travessia, também a possibilidade de realizarmos uma visita de barco às grutas localizadas na costa Sul da ilha, e nós optámos por contratar também esse serviço. Ora, nesse caso, será recomendável caminharmos até ao Forte, ficarmos por lá algum tempo, e pedirmos para nos apanharem nesse local com o barco da visita às grutas. Assim, visitaremos as grutas e regressaremos depois diretamente de barco até ao cais, e não teremos de fazer a caminhada de regresso, evitando assim a escadaria de 220 degraus, que, neste caso, teríamos de subir. 

E foi assim que fizemos, à hora marcada chegou um barco com um vidro ao meio do convés, para observarmos o fundo do mar (mas nada muito impressionante), e levou-nos a visitar as grutas num percurso entre meia-hora e quarenta minutos. 

O principal atrativo que vai sendo revelado pelo guia que nos acompanha, é a identificação de semelhanças entre os rochedos e as cavernas, com animais ou locais... como acontece com o elefante, ou com a catedral (neste caso, foi feita uma alusão direta à Catedral da Luz, que muito apreciei). 

No final do passeio o barco deixa-nos de novo no cais principal, onde tínhamos ainda cerca de duas horas, tempo suficiente para explorar a parte Norte da ilha, a zona em torno do cais e a praia. 

Um dos atrativos desta zona será desfrutar um pouco da praia, a tal que nos surpreendeu com aquele azulão, que se desenvolve ao longo de toda uma enseada rochosa, onde florescem mantos verdes de chorões. 

Na encosta por detrás do cais fica aquilo que podemos chamar a povoação das Berlengas. Várias casinhas de pescadores, ocupadas apenas nos períodos de Primavera e Verão, e também um restaurante, que só abre na chamada época alta, que acaba a 15 de setembro... e há ainda uma casa de banho pública, que é algo muito importante. 
Nesta mesma encosta fica também um conjunto de socalcos que são utilizados como parque de campismo, e que beneficiam de uma vista fantástica sobre a enseada da praia, permitindo que os campistas, ao acordar, possam desfrutar da paisagem de uma praia deserta, o que só acontece até à chegada do primeiro barco. 

Fizemos ainda uma última caminhada pelo lado Norte da ilha, com passagem por algumas paisagens interessantes, como o Carreiro dos Cações ou as Buzinas. 

Percorremos alguns caminhos totalmente desertos, a menos do principal habitante da ilha, a gaivota... e regressámos ao cais, contemplando uma última vez aquele azul surpreendente. 


Voltámos ao barco para mais 45 min de frio, salpicos e abanões... o mar ainda “chão”, portanto. E lá chegámos a Peniche a bater o dente, mas satisfeitos por um dia cheio, cansativo, mas um grande dia, afinal, e mesmo sem sol, o dia começou dececionante, mas a ilha acabou por nos ir revelando algumas surpresas interessantes... e o Senhor Zé, o mestre da embarcação, olhou para nós e encolheu os ombros com um ar conformado, dizendo: ”afinal hoje não abriu”. 


Setembro de 2018