sábado, 18 de agosto de 1984

Belgrado


Durante um dos meus inter-rails atravessei grande parte da antiga Jugoslávia a caminho da Grécia, e fiz apenas duas paragens para visitar as cidades mais relevantes que fui encontrando. Uma dessas paragens foi na cidade de Zagreb, que mais tarde se iria transformar na capital da Croácia, e a paragem principal, onde fique dois dias, foi na cidade de Belgrado, a capital jugoslava, que, entretanto, se transformou na capital da Sérvia.


Naquela altura, em meados dos anos oitenta, Belgrado era uma cidade profundamente desinteressante, seria talvez uma das capitais europeias mais deprimentes, rivalizando neste ranking com algumas das capitais dos países de Leste, como Bucareste ou Sófia, e muito longe de todas as cidades ocidentais que já conhecia e que haveria de conhecer nos anos seguintes.
Mas, naquela época, sendo o meu primeiro país dito comunista, havia a novidade de poder observar o que ali se passava. Mas não se passava nada de muito estranho e, na verdade, a Jugoslávia até era algo diferente da verdadeira cortina de ferro pró-União Soviética de outros países, seguindo um modelo de socialismo muito mais aberto, talvez até democrático, com base nas ideologias implementadas pelo Marechal Tito, o grande estadista deste país.

Assim, a graça principal de visitar a cidade de Belgrado foi a de sentir um país com um nível de desenvolvimento que conseguia ser ainda pior que o nosso (recorde-se que, nos anos oitenta, Portugal era um país muito pobre e nem conseguia disfarçar… agora continua pobre, mas já vai disfarçando).

A imagem de Leste era bem evidente, desde logo, com tudo escrito em alfabeto Cirílico (que hoje já vai sendo substituído pelo nosso alfabeto), a arquitetura do bloco de Leste bastante presente, à exceção dos edifícios monumentais da época do Império austro-húngaro, e todas as ruas cheias de carros soviéticos… na altura quase que só se viam os Zastava 750, muito semelhantes aos Fiat 600, que se viam por cá. Mas tinha uma coisa ótima, é que a vida era bem mais barata do que cá, o que nos dava para frequentar todo o tipo de restaurantes sem quaisquer receios.

Quanto ao resto, nada de muito entusiasmante, uma série de monumentos e edifício públicos clássicos e algumas igrejas ortodoxas. Como sempre, percorremos os principais monumentos e palmilhámos várias vezes o centro de comércio, com preços bastante generosos, mas sem grandes produtos de qualidade… mas ainda lá comprei uma bela máquina fotográfica, uma Zenit soviética que era excelente e me acompanhou durante vários anos.

A ver pelo meu arquivo de fotografias terei passado pelos pontos assinalados neste mapa, sem grande certeza das ruas terei percorrido:
 
A cidade tem alguns monumentos, uns deles religiosos e outros da época em que a Sérvia fazia parte do Império Austro-húngaro. Aliás, todos os países que formaram a Jugoslávia faziam parte do Império Austro-húngaro e foram agregados numa federação de estados quando este foi extinto, depois da primeira grande guerra. Por isso, encontramos na cidade alguns palácios monumentais dos tempos da Monarquia dos Habsburgos, e são esses edifícios que fazem alguma diferença numa cidade que é globalmente muito feia.

Iremos começar o nosso relato seguindo de Sul para Norte, mas deixando para depois todos os monumentos religiosos. Assim começámos pelo lado Sul, junto ao Kalenić Pijaca, o principal mercado da cidade. As suas bancas estão localizadas numa praça triangular junto a várias mercearias, padarias e floristas, e que se encontra ladeada por alguns edifícios horríveis, tão típicos desta cidade feia. Dentro do mercado estão dezenas de barracas vendendo, sobretudo, frutas e legumes, muitas delas onde são os próprios agricultores que apregoavam os seus produtos num cenário completamente caótico… naquela época, era até algo assustador, e lembro-me que não nos quisemos demorar muito tempo naquele espaço.
Saindo (ou fugindo) desta zona tão confusa, e seguindo em direção ao centro da cidade, encontramos o primeiro monumento de referência, o Museu Nikola Tesla. Trata-se de um museu tecnológico sobre a obra de Nikola Tesla, um inventor nascido em 1856 na povoação de Smiljan, que fazia parte do Império Austro-húngaro e que hoje pertence à Croácia. Apesar de ter nascido na atual Croácia, como fazia parte de uma família sérvia, a sua origem é atualmente reclamada tanto pelos croatas como pelos sérvios… só mais um ponto de divergência entre estes dois países.

Tesla deixou importantes contribuições para o desenvolvimento das tecnologias mais relevantes dos últimos séculos, como a transmissão via rádio, a robótica, a técnica de controle remoto, os radares, a física nuclear e a ciência computacional. Um conjunto extraordinário de matérias altamente inovadoras para o final do século XIX e início do século XX.

Mas, curiosamente, aquilo que conferiu a esta personalidade um destaque superlativo, não foi propriamente a sua carreira enquanto inventor e cientista, mas sim por ter sido dado o seu nome a uma das principais marcas de carros elétricos, os Tesla.

O museu, que foi instalado numa villa residencial apalaçada, guarda e divulga todo o espólio deste cientista, desde o ano em que foi criado, em 1952, muito antes do seu nome ter sido associado à tal marca de carros americana.
Mais à frente surge um dos principais edifícios públicos do país, o Parlamento Jugoslavo, que atualmente é o Parlamento da Sérvia.

O edifício da Assembleia Nacional foi projetado em 1892 e foi, desde logo, concebido para ser um parlamento de partido único… e foi mesmo assim que veio a ser utilizado durante todo o período da Federação Jugoslava, a maior parte do tempo sob o comando do Marechal Tito.

Durante décadas a cidade esteve sujeita a várias guerras, desde os primeiros combates dos Balcãs, à primeira guerra mundial e, sobretudo, à guerra da independência entre os vários países da antiga Jugoslávia, que a Sérvia, dominadora, agrediu, tentando impedir a fragmentação da federação Jugoslava.

Durante toda a década de 1990 a Sérvia atacou os países vizinhos que procuravam ser independentes, numa guerra violenta com motivações étnicas e religiosas, sobretudo na Bósnia, onde se verificou o extermínio de uma parte da população muçulmana, levando quase dois milhões de bósnios a abandonar o seu país.

Ao fim de tantos anos de uma guerra sangrenta e após sucessivos acordos de paz, mediados pelos governos ocidentais, e porque a Sérvia relutava em aceitar as cedências de território e os cessar-fogo que lhe eram impostos, a NATO acabou por atacar a Sérvia, bombardeando a cidade de Belgrado e destruindo algumas infraestruturas de transportes e de comunicações, enfraquecendo assim as forças sérvias, levando-as à rendição, o que aconteceu apenas em 2001. Nesse ataque das forças ocidentais, alguns dos monumentos da cidade acabaram por ser afetados, como foi o caso deste edifício do parlamento.

Mais tarde, após a reabilitação do palácio, um dos mais monumentais de Belgrado, foi ali instalada a Assembleia Nacional da Sérvia, que ainda hoje ali funciona.
A caminho do centro da cidade, numa zona em que teremos dificuldade em chamar de Centro Histórico, porque a arquitetura continua a ser maioritariamente feia, encontramos uma das principais praças, a Praça da República, ou Trg Republike, em sérvio.

É uma das praças fundamentais do centro da cidade, rodeada por um conjunto de edifícios muito pouco bonitos, como seria de esperar, e ao centro ergue-se o Monumento ao Príncipe Mihailo, feito em 1882 por um escultor italiano, Enrico Pazzi, com a representação da figura equestre deste antigo governante na Sérvia.
No entanto, encontramos também nesta praça dois edifícios bem diferentes, muito mais bonitos, revelando ainda o charme dos monumentos do tempo do Império Austro-húngaro, trata-se do Teatro Nacional de Belgrado e, sobretudo, aquele que será um dos mais belos edifícios da cidade, o Museu Nacional da Sérvia.
A partir da Praça da República podemos chegar ao Bairro do Skadarlija, um antigo recanto boémio de Belgrado. Tornou-se famoso pelas suas kafanas, que são restaurantes típicos, com comida local e música ao vivo, uma instituição da vida boémia com origem no século XVI, no período otomano, quando passaram a ser frequentados por personalidades notórias da vida cultural da cidade.

Além de vários restaurantes que tentam reproduzir este tipo de tradição local, vamos também encontrar algumas lojas, sobretudo floristas, que ajudam a decorar as ruas do bairro com as suas flores e plantas que se encontram expostas.
Voltando de novo ao centro da cidade, e às mesmas ruas feias e de aspeto sujo, acabamos por entrar numa zona um bocadinho mais interessante, onde se concentram as principais lojas da cidade e onde se formam alguns espaços pedonais mais atraentes, devido ao movimento das pessoas enquanto fazem as suas compras.

Dessas ruas de comércio, salientam-se duas delas que estão assinaladas no mapa, a Rua Kralja Petra e, sobretudo, a rua principal do centro da cidade, a Rua Kneza Mihaila.
No final desta zona de comércio do centro de Belgrado, surge o maior parque da cidade, o Parque Tašmajdan. É desta zona verde que temos a oportunidade de contemplar as paisagens sobre o vale do Rio Sava que, logo a seguir, desemboca no caudal do rio principal, o nosso conhecido Rio Danúbio.
Todo este parque está cercado pela Fortaleza de Belgrado, talvez o local histórico mais importante da cidade. A sua origem remonta há vários séculos atrás, mas confesso que o meu conhecimento sobre esses pormenores à época da minha visita não me permitiu avaliar a importância histórica do monumento, tendo-me ficado apenas pela imagem da muralha que vamos encontrando e, sobretudo, do seu principal portão, o Zindan Gate.

Foi construído em meados do século XV para defesa da entrada principal da cidade, com o nome de Zindan, que se refere a uma prisão da Ásia Central, porque os otomanos usavam estes portões como masmorras.
O parque Tašmajdan tem algumas atrações, como monumentos e até museus, mas destaco aqui apenas duas dessas referências, uma delas é uma escadaria e a outra é o chamado monumento de Victor.

A Grande Escadaria do Parque ocupa o lado sudoeste da fortaleza, com vista para o rio. A escada foi construída durante uma renovação do parque feita em 1928, mas, durante a Segunda Guerra Mundial, a escada foi danificada por um bombardeiro alemão e, em 1984, aquando da minha visita, já se encontrava devidamente reabilitada. Mais recentemente, no final do século XX, esta escadaria foi também afetada pelos bombardeamentos da NATO e, atualmente, já se encontra de novo recuperada.
Um outro elemento, que é quase um ex-libris da cidade, é o Monumento de Victor, uma figura masculina nua em pé, feita de bronze, e com um falcão na mão esquerda e uma espada na mão direita (como símbolos de paz e de guerra), modelada pelo escultor Ivan Meštrović.

Esta estátua homenageia a vitória do exército sérvio nas antigas guerras dos Balcãs, e foi criado nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial. Originalmente foi concebido como uma fonte, que seria colocada no centro de Belgrado, mas com o início da guerra mundial, a figura foi guardada numa casa e permaneceu intacta durante os bombardeamentos. Após o fim da guerra, a ideia de fonte foi abandonada e a escultura foi colocada num pedestal alto em forma de coluna dórica com uma altura total de 14 metros.
Do miradouro da plataforma onde se ergue o monumento de Victor, podem avistar-se os dois principais rios que ali correm. O Rio Sava, que é verdadeiramente o rio desta cidade, onde se encontram a maior parte das pontes que nos ligam ao centro de Belgrado, mas logo depois o Sava desagua no rio principal que, embora passe mais afastado, constitui o verdadeiro símbolo da cidade, o Rio Danúbio, nosso conhecido de outras viagens pelas cidades que vai atravessando, como Viena ou Budapeste.

Mas se quisermos emergir um pouco mais nestes dois rios, podemos entrar num dos cruzeiros que nos são oferecidos. O percurso não é longo, de 1h30 a 2h00, mas sem grande coisa para ver, diga-se. Ao longo do passeio vamos observando os mais importantes marcos da cidade sempre acompanhados pela descrição histórica que ecoa nos altifalantes em várias línguas. Só daqui conseguiremos ver as paisagens da cidade do seu melhor ângulo, mostrando, por exemplo a fortaleza de Belgrado, ou as torres e as cúpulas das igrejas Ortodoxas da cidade.
Voltando de novo até ao centro da cidade, iremos agora passar por cada uma das suas principais Igrejas Ortodoxas.

A Igreja de São Miguel Arcanjo, ou Saborna, em sérvio, é a catedral ortodoxa de Belgrado e é um dos lugares de culto religioso mais importantes do país. Foi construída entre 1837 e 1840 junto às ruas do centro, num lugar próximo do parque Tašmajdan, onde existia uma igreja do XVI também dedicada a São Miguel. A igreja de São Miguel Arcanjo é bonita vista de fora, devido à sua torre que se destaca na paisagem, muito sóbria, mas imponente.
    
Atravessando todo o centro de Belgrado e chegando de novo perto do Parlamento da Sérvia, encontramos um outro parque da cidade, muito menor que o anterior, o Parque Tašmajdan, e é lá que se ergue a Igreja de São Marcos, ou Crkva Svetog Marka.

É uma igreja relativamente recente, foi construída em 1940 num estilo servo-bizantino, junto a uma antiga capela de madeira do século XIX.

Não é a mais importante da cidade, apesar de ter recebido o estatuto de Basílica, mas é uma das maiores igrejas de todo o país, com 62 metros de comprimento e 45 metros de largura, e a altura da cúpula principal até a base da cruz que atinge os 60 metros.
Continuando ainda na direção Sul da cidade encontraremos o Templo de São Sava, uma espécie de “Sagrada Família” da Sérvia (apesar das inúmeras diferenças). Trata-se de uma igreja que tem em comum com a famosa igreja catalã, o facto de ter sido concebida seguindo projetos megalómanos e também por estar em construção há vários anos.

A conceção do Templo de São Sava cumpria o objetivo de concluir a obra até ao final do século XIX, mas começou logo atrasada, e só em 1905 é que foi lançado o concurso para o projeto, e para agravar os atrasos, todas as ideias apresentadas foram rejeitadas.

Entretanto a Sérvia foi assolada pelas Guerras Balcânicas (1912 e 1913) e pela 1ª Guerra Mundial (1914-1918), pelo que, só em 1919 se voltaria a pensar na construção desta igreja.

Em 1926 foi então escolhido o projeto que iria ganhar forma, mas o projeto demorou e a construção, propriamente dita, começou apenas em 1935 e prosseguiu até 1941, quando a Jugoslávia foi invadida pela Alemanha nazi.

A obra ficou parada muitos anos, mesmo já depois do fim da guerra, até que, já em 1958, um Patriarca da Igreja Ortodoxa teve a ideia de retomar a construção. Nessa altura, o governo Jugoslavo dificultou bastante o processo uma vez que os estados ditos socialistas ou comunistas não têm religião oficial. Mas, por fim, na década de 1980, ainda na época da Jugoslávia, foi dada a autorização para os trabalhos recomeçassem… e foi nessa altura que visitei a cidade, quando a igreja não era mais que um estaleiro, e eu um jovem engenheiro fascinado por obras emblemáticas… meu Deus, onde é que eu tinha a cabeça!

Já mais recentemente, em 1999 a Sérvia foi bombardeada pela NATO, o que fez interromper o projeto, mais uma vez, que nessa data ainda não tinha acabado. Os trabalhos só foram retomados em 2001.

Em 2003 a obra foi terminada no exterior, mas, por dentro, está ainda longe de ficar concluída. As catacumbas estão terminadas e foram inauguradas, enquanto a decoração interior da cúpula só foi revelada 2018.

De qualquer forma, este templo desempenha agora o papel de um lugar santo para a igreja ortodoxo, venerado por todos os fiéis desta igreja, não só na Sérvia… é que o local de implantação do templo é onde se pensa terem sido cremados os restos mortais de São Sava, o fundador da Igreja Ortodoxa Sérvia e importante figura da época medieval nos Balcãs.
Nos jardins em torno da igreja, ergue-se o Monumento a Karađorđe, uma escultura de bronze construída em 1979, em memória do grande líder da Primeira Revolta Sérvia, Đorđe Petrović Karađorđe.

Termino assim uma crónica que foi inspirada na visita que fiz à cidade na década de 80 do século passado, quando Belgrado era a capital da Jugoslávia, complementando agora os textos e algumas fotos, com dados atuais, de 2023, quando a Jugoslávia já nem existe, e a cidade passou a ser capital de um outro país. Pelo caminho ficou a década de 1990, com sucessivas guerras, primeiro com a Sérvia como principal agressor, atacando os países da federação que procuravam obter a sua independência, mas terminando a ser atacada pela NATO, num esforço para que a Sérvia cumprisse os acordos de paz assinados… só assim se conseguiu alguma paz nesta região dos Balcãs.

Queria ainda deixar bem evidente a minha opinião em relação a este destino, registando que existem muitas outras atrações nos países Balcânicos, bem mais interessantes do que aquilo que podemos encontrar aqui em Belgrado, apesar desta cidade ter sido a mais poderosa da região ao longo de muitos anos, não é um lugar que eu recomende.

Carlos Prestes

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