sexta-feira, 1 de setembro de 2006

Num barco à vela, do Algarve até Lisboa


Durante cinco anos, entre 2005 e 2010, tive o privilégio de fazer parte da tripulação de uma embarcação de vela de cruzeiro-regata, sob liderança do skipper e dono do barco, o Francisco Alvarenga ou Farrica, para os amigos. Durante esse período fizemos inúmeras regatas, numa competição na qual tínhamos pretensões aos lugares de topo, sobretudo quando, com um Veleiro Fortuna 9 (com 9m), disputávamos o campeonato da Classe B. Mais tarde, com a troca de barco para um Dehler 36 pés (11m), passámos para a Classe A e deixámos de ser tão competitivos, apesar de nos termos tornado muito mais rápidos.

Nas várias regatas, que tiveram sempre as suas próprias histórias, velejámos sobretudo pelo Tejo, às vezes até para lá do Bugio e, noutros dias, até Sesimbra e mesmo até Troia, atravessando o estuário do Sado, junto às margens das praias magníficas que nascem no sopé da Serra da Arrábida.

Mas nesta crónica não me vou referir a esses cinco anos de regatas, mas sim, a um outro passeio em concreto, que fizemos no início de Setembro de 2006, quando viemos à vela do Algarve até Lisboa.


No fim dessa viagem, e juntando mais algumas imagens de passeios e regatas que realizámos, fiz este vídeo que reflete um pouco do ambiente vivido ao longo de cinco anos (para a banda sonora usei dois covers de músicas que considerei apropriadas, cantadas e tocadas por mim, ao piano e nas guitarras).


(Três dias num barco à vela, entre Portimão e Lisboa, em Setembro de 2006)


Primeiro Dia (1 de Setembro):

Na primeira sexta-feira de Setembro de 2006, logo pela madrugada, cheguei à Marina de Portimão e juntei-me à tripulação do veleiro Fortuna 9, com que iríamos percorrer as cerca de 150 milhas marítimas que nos separavam até à doca de Belém em Lisboa. Com o Farrica, nosso comandante e skipper, o Bartolomeu (irmão do Farrica), o Tiago e o tio Luís.

Estava uma noite inacreditável, com uma temperatura tão amena que nem desci para a cabine, optando por passar o resto da noite no convés, a tentar adormecer sob um céu completamente estrelado. Não cheguei sequer a conseguir dormir porque às três horas já o resto da tripulação acordava para cumprirmos a hora de saída programada, às quatro da manhã. 

Fizemos as habituais tarefas de preparação de velas e cabos, desamarrámos o barco e largámos mar adentro.
A noite estava calma e foi necessário algum tempo de motor, porque o vento era insuficiente para um ritmo razoável. Fomos contactando com outras três embarcações que iriam fazer parte da caravana e que, ao fim de algum tempo, já se encontravam no nosso raio de visibilidade.

Depois de deixarmos para trás as praias de Lagos e da Praia da Luz, apenas assinaladas por algumas luzes ténues que definiam os principais contornos, começámos a vislumbrar a silhueta do promontório de Sagres, ainda ao longe.

Às cinco da manhã começou o espetáculo. Na medida em que nos aproximávamos do promontório o sol ia nascendo, numa das paisagens mais fantásticas a que já pude assistir. Sentimo-nos de repente num imenso mar de fogo, com o céu tingido de um vermelho-vivo, pelo sol que nascia e refletia a sua cor sobre a toda a imensidão.
Já não tínhamos o motor ligado e velejávamos suavemente em silêncio, apenas o ruído do casco, cortando as águas avermelhadas. Que imagens tão sublimes, que tremendo privilégio por ser marinheiro naquele mar e naqueles instantes inesquecíveis.

O dia foi clareando rapidamente e o cabo aproximava-se. Não contávamos com uma boa esperança para além do cabo, mas também não estávamos à espera de grandes tormentas. Mas, a verdade é que, surpreendentemente, o vento levantou rapidamente, vindo sempre de Norte, o que nos iria obrigar a uma bolina permanente até Sines, onde pretendíamos pernoitar.

Rizámos a vela grande para diminuir a área de pano e evitar que o barco adornasse e pudéssemos navegar com o mastro o mais vertical possível, tornando assim a viagem menos desconfortável. 

E já com o vento mais forte e ainda com boa visibilidade, e enquanto avistávamos o cabo de São Vicente a estibordo, fomos surpreendidos por uma família de golfinhos, que nos seguiu quase colados ao barco ao longo de umas centenas de metros... foi a segunda surpresa da viagem, depois daquele nascer do sol deslumbrante, vieram agora os golfinhos alegrar a tripulação.


Entretanto, começámo-nos a afastar da costa num bordo que permitisse o ângulo correto em relação ao vento Norte, e só iríamos voltar a ver terra no final do dia, já perto de Sines.

E, nessa altura, começou a cair uma neblina densa e, de um momento para o outro, o ar ficou frio, o vento tornou-se forte, o mar agitado e a visibilidade muito reduzida.

Passámos a navegar com atenção ao radar para evitar qualquer obstáculo e começámos a sentir os abanões constantes provocados pelas vagas que, entretanto, íamos enfrentando. E começaram também os primeiros sinais de enjoo... e, nessa altura, o tio Luís, que continuava na cabine a fazer sudokus, desafiando a lei natural do enjoo e, enquanto todos os outros quase a definhavam, chegou ao convés e perguntou: "Vai um copinho do rosé?". 

Mas o mar acabou por acalmar e os estômagos lá sossegaram. Podíamos então entrar no regime de navegação à vista, ou com auxílio do radar, em que cada um dos tripulantes toma conta do leme em períodos de uma hora, embora o piloto automático garanta sempre o rumo traçado, enquanto os outros vão dormindo ou só descansando. 

Num dos períodos em que eu não estava de plantão, aproveitei para dormir uma sesta que compensasse uma noite inteira sem dormir. Dormia no convés porque, na cabine, os enjoos são muito mais frequentes e, quando acordei, constatei que todos vinham a dormir profundamente, incluindo o Bartolomeu que era suposto estar a olhar pelo leme, e ao longe ouvia-se o ronco do buzinar de um cargueiro, que não conseguíamos ver, devido à falta de visibilidade que ainda de fazia notar.

Sabíamos, ou julgávamos saber, que os navios de grande porte seguiam por rumos diferentes das embarcações de recreio e era essa a nossa tranquilidade. Na verdade, há mesmo “corredores” diferentes para os vários tipos de barcos, mas não era certo que o nosso rumo garantisse uma distância de segurança relativamente às restantes embarcações e, por isso, o melhor era estar alguém desperto para ver o que estava a passar... e não deixarmos o barco seguir o seu destino como se tivesse vontade própria.

Apesar de eu ter sido também eleito como cozinheiro de bordo, neste primeiro dia, ainda havia salgados e bolos e não era necessário cozinhar… e, claro, havia ainda muita cerveja e algumas garrafas de vinho que o tio Luís voltava a oferecer de quando em quando.

Como o passar das horas, o céu começou a limpar e o sol passou a fazer-nos companhia, o que nos dava uma tranquilidade completamente diferente. Começámos a ver terra e, logo depois, chegámos ao porto de Sines, onde aportámos para passar a noite.


Sines foi sempre para mim uma marca da infância, pelos vários Verões que lá passei entre os 6 e os 14 anos e, por isso, é sempre muito nostálgico lá voltar. Ainda por cima, escolhemos um restaurante para jantar que era num mesmo espaço que costumávamos frequentar com os meus pais e a minha irmã.

Para mim, naquela noite, Sines foi bem mais do que o vilarejo pitoresco da costa alentejana, em torno de uma baía lindíssima, e vigiado pelo seu castelo e pela figura sempre presente de Vasco da Gama. Naquela noite, Sines foi um verdadeiro porto de abrigo que me acolheu depois de um dia inteiro no mar, quase perdido, quase à deriva, num rumo que desconhecia e que não era mais do que uma leve esperança de chegar a bom porto. Mas cheguei a terra firme, num porto seguro que me acolheu com o calor de uma infância feliz, com a segurança de quando cuidavam de mim. 

Depois de um jantar divino, um peixe no formo com sabor a mar, um vinho branco alentejano, um pão com azeitonas que me fez recordar outros tempos, passámos ainda o final da noite na galhofa, no convés do barco, jogando às cartas e bebendo. A noite foi tranquila, na cabine, o leve ondular das águas na marina embalaram-me num sono profundo e, de manhã, ao acordar, os silêncios só eram cortados por alguns ruídos das embarcações no seu flutuar embalado e por um suave marulhar ao longe, das ondas que só conseguia imaginar.

Segundo Dia (2 de Setembro):

Saímos cedo do porto de Sines. A viagem não seria tão longa como a do dia anterior, teríamos apenas de chegar até Sesimbra, onde iríamos pernoitar. Mas como o dia se adivinhava quente e soalheiro, combinámos fazer umas paragens para uns mergulhos e uns banhos de mar.

A viagem correu bem, ainda e sempre à bolina, o vento Norte não nos largou em todo o percurso (como é habitual, aliás).

Desta vez tive que fazer o almoço, mas com um pequeno incidente… enquanto agitava o frasco de sal para que saísse apenas uma pitada que fazia falta ao tempero, vi a tampa a cair e, atrás dela, todo o conteúdo de sal que foi parar ao tacho, estragando o refogado e a carne que iria ser o recheio da nossa massa. Foi tudo fora, menos a carne que lavei com as reservas de água doce, e comecei tudo do princípio. Mas, dessa vez, temperei com todas as cautelas e lá acabámos por conseguir almoçar.

E enquanto me debatia com tachos e panelas lá em baixo no porão, era agora o skipper principal, o nosso Farrica, que comandava as operações, rumo à foz do Sado.
Este trajeto é feito avistando a costa sempre ao longe. A Serra da Arrábida vai-se tornando cada vez mais imponente até que entramos no estuário do Sado. De um lado, as praias de extensos areais da península de Troia e, do outro, as enseadas com praias de areia branca e águas de azul cristalino, onde nascem as encostas de um verde intenso que cobre toda a Serra da Arrábida.
Decidimos chegar até perto de Troia, bem junto à marina, e depois voltar de novo a sair desta zona e fundear o barco próximo de uma das ilhas de areia que ali se formam, e por lá ficámos algum tempo. Mergulhámos e nadámos e voltámos a subir e outra vez a saltar... até nos sentirmos refrescados e já cansados, para depois nos esticarmos ao sol sobre o convés e, claro, para começarem a rodar cervejas geladas de mão em mão.

Noutros anos, sempre na altura do 25 de Abril, estivemos em várias regatas entre Lisboa e Sesimbra e depois até Troia e vice-versa. Nessas alturas o rio estava ainda mais fantástico porque, além das belezas naturais que estão sempre presentes, a paisagem era ornamentada pelos vários veleiros em regata, com as cores vivas das velas de spinnaker (ou balões) que o vento enchia.

É dessas ocasiões que vos trago algumas fotos, e não do dia em que, sozinhos, aproveitámos as águas cristalinas e o sol quente, para nos retemperar por mais um dia inteiro no mar. 


Amanhã de manhã voltaríamos a passar pela baía de Troia, mas, desta vez, iriamos fundear o barco na outra margem, perto das praias da Arrábida.
Chegámos a Sesimbra no final da tarde e, depois do banho de água doce nos balneários da marina, partimos para jantar, numa noite muito animada, com a cidade a aproveitar os últimos serões quentes do final do Verão.



Terceiro Dia (3 de Setembro):

Saímos de Sesimbra, como noutras vezes, na direção das praias da Arrábida, seguindo sempre bem próximo daquela costa lindíssima.

Já na zona da Arrábida, onde se encontram algumas das praias mas bonitas de Portugal, como a dos Galapinhos, a minha favorita, ou a dos Galapos e a dos Coelhos, parámos para uns mergulhos e uns banhos de sol, num dia que se adivinhava como um dos últimos dias quentes deste verão de 2006… e era preciso aproveitar.

Ao início da tarde estávamos de saída para o nosso último percurso até Lisboa, já em toada de despedidas. O dia estava limpo, mas com algum vento, o que faria adornar o barco e nos iria obrigar a algumas manobras de mudança de bordo... que me iriam perturbar uma vez mais as tarefas culinárias, quando fosse fazer o almoço.
A saída de Sesimbra por mar tem sempre o interesse de podermos observar toda a zona de costa até o Cabo Espichel, que não tem outro tipo de acesso e que, por isso, nos é totalmente desconhecida.

Depois há a passagem do próprio cabo, sempre imponente, com os seus rochedos estratificados, revelando os milhões de anos das suas camadas, e onde, aliás, se encontram mesmo algumas pegadas de dinossauros... que já cheguei a explorar, arrastando as miúdas para uma aventura paleontológica.

Os cabos, vistos a partir do mar, são sempre grandiosos e até assustadoras. Depois cruzam-se os ventos e as correntes e o barco desata num balanço que só pára várias milhas depois. E a beleza das paisagens acaba por ficar ofuscada por um certo frio na espinha, que nos faz sentir tão pequeninos, junto aquela imensidão de mar e rochedos.
Já em águas mais calmas, depois de ter cozinhado o almoço, já tardio, e de termos feito a nossa última refeição a bordo, já só faltava entrarmos triunfantes pela barra do Tejo... onde o cozinheiro voltou a ser marinheiro.

Ao deixarmos a estibordo os longos areais das praias da Caparica, levantou-se a nortada que chega ao Tejo todos os dias nos finais de tarde, o barco começou a reagir ao vento, começámos a encontrar outras embarcações no rio e entrámos em procedimentos de regata, com bordos sucessivos para manter o ritmo e, sobretudo, criando alguma adrenalina, para acabar estes três dias em beleza.
Entrámos depois no estuário do rio contornando o Bugio e o sol começou a cair e voltou a colorir as águas, o mesmo vermelho, mas, desta vez, num pôr-do-sol que nos mostrava uma Lisboa quase melancólica, pronta para nos acolher neste regresso a casa.
Passámos pelo canal a norte do Bugio, esse farol que é quase místico, e que nos guia mas também nos assusta, revelando uma presença tantas vezes fantasmagórica.

Terminávamos assim mais um dia no mar, vindos de Sesimbra, desta vez, num ritmo de passeio, apreciando já o sabor de uma despedida, de um Verão que acabava e de uma jornada que nos levou a uma sensação de superação que, para mim, será sempre inesquecível.



Apenas três dias no mar, mas podiam ter sido semanas ou meses, que encontraríamos esta mesma cidade, pronta para a nossa chegada, guiando-nos ao nosso ponto final, logo depois do Padrão dos Descobrimentos, onde fomos recebidos pelo mesmo Infante, que tanto simboliza a história dos navegantes, sem nunca sequer ter navegado.

Foram três dias de descoberta, não encontrámos praias desertas nem ilhas perdidas, mas eu descobri-me a mim próprio mais um bocadinho. Em todas as viagens encontramos sempre qualquer coisa de nós mesmos, mas quando temos apenas o mar como parceiro, as reflexões são mais intensas e a descoberta é ainda mais marcante.

A vida continua agora em terra firme, mas não vou esquecer o flutuar ondulado que me embalou e me encantou nestes três dias extraordinários. 

Baixámos as velas, amarrámos o barco e recolhi as bagagens… já com saudades desta vida de marinheiro.



Carlos Prestes
Setembro de 2006