*Origem etimológica: latim holocaustum, -i, do grego holókautos, -on, sacrifício em que se queima a vítima inteira
A decisão de visitar os campos de concentração de Auschwitz e Birkenau era antiga. Sentia que devia essa visita a todos os que por lá passaram, morreram e sobreviveram. A única forma de manter derrotada a filosofia dos alemães nazis é a lembrança, é a permanência da memória. As viagens, os lugares que se visitam, deixam um sulco traçado na memória, um lastro contra a esquecimento, pelo que fazer esta visita transforma a “percepção” do sofrimento e horror em realidade.
11 de junho de 2024
Auschwitz fica a cerca de 70 km de Cracóvia, distância que se percorre em pouco mais de uma hora de autocarro. Marquei a visita guiada através do get your guide para as 8h, o que implicou apanhar um autocarro no centro de Cracóvia, por volta das 6 da manhã.
Os memoriais são quase sempre lugares de romarias turísticas que podem retirar verdade e densidade a esses locais, por isso escolhi visitar este “lugar de memória e museu” num dia de semana, quinta-feira, 11 de junho, evitando as multidões de fim-de-semana.
Os polacos cuidam bem da preservação desta memória, os principais grupos de visitantes nesse dia, eram grupos de crianças em idade escolar. Reconhecer a tentativa de extermínio daquele povo é uma forma de ensinar sobre que europeus somos hoje.
Este campo foi sendo sistematicamente aumentado tendo se tornado no maior campo de concentração da Alemanha nazi e, a partir de 1942, tornou-se o maior centro de extermínio em massa.
Em 1941, para levar a bom termo a “solução final da questão judaica” o Terceiro Reich deu início à construção de Auschwitz II - Birkenau, um campo de extermínio, localizado a cerca de 3,5 km de Auschwitz.
Auschwitz
A entrada para o campo de concentração de Auschwitz faz-se através de uma construção recente, uma espécie de corredor em betão, às vezes fechado, outras vezes a céu aberto, que se percorre em silêncio.
O silêncio acompanha cada passo, cada pensamento, cada pergunta sem resposta e adensa-se através da voz off que em ecoa, soltando palavras inicialmente sem sentido, mas que, rapidamente, ganham a forma dos nomes das pessoas que caminharam para aquele lugar de extermínio.
Durante toda a visita será o silêncio, o companheiro do lado de cada visitante.
O campo de concentração de Auschwitz foi fundado em 1940, na Polónia invadida pelo exército nazi, no centro da Europa ocupada. As suas instalações pertenciam, antes da guerra, ao exército polaco e encontravam-se desertas, pelo que estavam prontas para receber o crescente número de prisioneiros polacos, que as prisões existentes já não suportavam por estarem sobrelotadas.
Apesar do museu poder ser visitado por conta própria, pareceu-me importante fazer esta visita com um guia. Um guia não apenas fornece contexto histórico, mas também ajuda a interpretar os inúmeros artefactos e locais significativos dentro do campo, permitindo uma compreensão mais profunda da magnitude dos acontecimentos que ali ocorreram... e chegamos assim ao início desta experiência arrebatadora, ao nos depararmos com a imagem tantas vezes ficcionada do portão de entrada, que quase nos parece familiar.

Ao atravessar a porta de Auschwitz começa a visita guiada, sob o poder da inscrição “Arbeit macht frei“ que significa “o trabalho liberta”. E a ironia da frase atinge uma crueldade inimaginável.
„Arbeit macht frei“ significa “o trabalho liberta” Foto by: Oleg Ignatovich
Todas as manhãs, saíam por este portão milhares de prisioneiros para executar trabalhos forçados e pesados. No regresso, à noite, para além do cansaço carregavam os corpos dos que tinham sido assassinados.
A foto de Oleg Ignatovich foi tirada em 27 de janeiro de 1945 aquando da libertação do campo de concentração pelos soldados russos.
Restavam sete mil prisioneiros neste campo, entre eles Primo Levi, que no seu livro “Se isto é um Homem”, faz um relato tão cru e despido de emoções que revela alguém que já não conhece dor, alegria, medo, nada. “Se isto é um homem” é a expressão da morte da humanidade.
Ao caminhar pelas ruas tranquilas ladeadas por passeios onde crescem árvores plantadas com intervalos regulares e edifícios construídos em tijolo, bem conservados, é difícil imaginar as atrocidades ali cometidas.
Os edifícios de Auschwitz estão numerados. Essa numeração tinha uma função prática e organizacional, permitindo que prisioneiros, guardas e administradores, localizassem rapidamente cada edifício, como alojamentos, áreas administrativas, armazéns, ou locais de tortura. A organização do mal. A racionalidade do mal. Nem todos estes edifícios são visitáveis.
A marcha do grupo de visitantes faz-se de aparente e serena tranquilidade. Em mim, essa respeitosa tranquilidade transforma-se em dor quase física ao entrar em alguns dos edifícios.
O museu está instalado em vários blocos. O Bloco 5 é talvez o mais difícil da visita, é o Bloco com as provas do crime, ainda que, com o aproximar do fim da guerra, os nazis tivessem tentado apagar todos os vestígios das suas actividades e destruir os objectos roubados aos judeus.
Estes objectos estão ali. Existem. Existem fora dos filmes e dos documentários que todos já vimos. Óculos, sapatos, malas de viagem e cestos de comida, acumulavam-se nos armazéns. Pertences de judeus que, por serem considerados inaptos para mão de obra escrava, eram de imediato assassinados nas câmaras de gás.
Os cabelos. São toneladas de cabelos de mulheres expostos numa enorme vitrina. Os cabelos eram utilizados para colchões e travesseiros.
Todos estes pertences fizeram parte da vida destas pessoas cujos rostos estão estampados na galeria de fotografias do museu. São rostos de desesperança que, no início, eram associados a um nome, mas depois, já eram apenas um número. Todos as pessoas destas fotografias foram assassinadas em Auschwitz.
A visita continua no exterior do memorial e museu de Auschwitz I. Havemos de passar pela parede da morte, entre os blocos 10 e 11, onde eram executados por fuzilamento em massa os condenados à morte.

Parede da Morte
No Bloco 10 esteve instalada a estação experimental de esterilização, onde centenas de judias morreram durante as experiências ou foram assassinadas para a realização de autópsias. Este Bloco não está aberto ao público, mas passar por ele provoca uma terrível sensação de impotência e medo.
O Bloco com o número 20 era uma enfermaria para prisioneiros com doenças infecciosas. O termo "enfermaria" é também ele cruel no contexto de Auschwitz. Os prisioneiros doentes eram abandonados nestes blocos sem cuidados médicos e acabavam por morrer das doenças, de fome ou eram seleccionados para execução.
Bloco com o nº10 Bloco com o nº20
O caminho, há direita do crematório, dá acesso ao portão da casa de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, cuja vida foi retratada no filme de 2023, “Zona de interesse”. De facto, a banalidade do mal tão cruelmente entendido por Hannah Arendt é aqui bem documentado.

Casa de família de Rudolf Höss
As cinzas e o odor a carne queimada envolviam seguramente a casa desta família. Os crematórios são paredes-meias com os jardins da casa. Apesar disso, viviam aquilo que parecia ser, de uma forma completamente aberrante, a vida de uma família feliz.
Antes da ocupação nazi, este edifício semi-enterrado era um armazém de munições do exército polaco. Tudo foi criteriosamente pensado neste campo de extermínio.
A sala maior foi inicialmente utilizada como depósito dos corpos dos prisioneiros assassinados. Mais tarde seria uma camara de gás. A inexorável crueldade é tão desmesuradamente grande que é até cruel a banalidade dos fornos, quase caseiros…
Foi um alívio sair dali. A incompreensão adensou-se dentro de mim, mas sou hoje testemunho de parte da nossa história.
Birkenau – Auschwitz II
A distância, curta, entre Auschwitz I e II faz-se de autocarro, em breves minutos... e somos recebidos por um edifício com uma fachada já conhecíamos de tantos filmes e tantos documentários, mas cuja proximidade se tornava agora arrepiante.

Para este campo de extermínio foram transportados, a partir de Março de 1942, mais de um milhão de judeus.
Além de ser um campo de concentração, Birkenau tornou-se no principal local do holocausto, onde foi levado a cabo o maior assassinato em massa de que há memória.
No início, os comboios paravam em frente ao edifício de vigia principal, cuja porta é conhecida como “Porta da morte”, e entravam os deportados. A partir de 1944, assim que os comboios entravam, os deportados eram logo, separados em duas filas: uma para mulheres e crianças e outra para homens. De cada uma das filas, eram seleccionados os que eram aptos para trabalhar, e os restantes, velhos, doentes, grávidas e crianças eram de imediato conduzidos às câmaras de gás.
Com a iminência do fim da guerra os alemães nazis destruíram quase todo o campo, restando apenas as ruínas das camaras de gás e alguns edifícios da secção das mulheres que se situava do lado esquerdo do edifício de vigia.
Nestes túneis entravam pessoas cujo destino desconheciam
Os barracões das mulheres, consideradas aptas e que, por isso, não eram encaminhadas directamete para as câmaras de gás, estão ainda preservados, quer os próprios edifícios quer também o seu interior, onde se encontram vestígios das muitas mulheres que por ali passaram.

Barracões dos dormitórios das mulheres
Interior dos dormitórios das mulheres
No primeiro ano de utilização, nenhum destes edifícios tinha qualquer casa de banho. A primeira foi construída um ano depois. Cada barracão recebia centenas de mulheres e, em cada compartimento, dormiam pelo menos cinco... como se dormir ali fosse algo possível.
Por ser um campo aberto numa área de 140 hectares, e talvez pelo seu grau de destruição, a visita a Birkenau não me transmitiu o mesmo sentido dramático de Auschwitz.
No entanto, um soldado da SS que fotografou as actividades do campo, em 1944, conseguiu repor em mim, a consciencialização profunda do que ali aconteceu.
Este soldado organizou um album com a sua reportagem fotográfica. Por ironia do destino, quero acreditar, esse album foi encontrado por uma sobrevivente de Auschwitz, LiLi Jacob, judia eslovaca, que se reconheceu numa das fotografias do album.
Na loja do Museu estatal Auschwitz-Birkenau, comprei um livro que mostra algumas das cerca de 200 fotografias feitas por este soldado das SS. O livro foi concebido por Piotr M. A. Cywiński e as fotos dos mesmos atuais dos mesmos locais, são de Pawel Sawichi.
"As fotografias de arquivo do chamado álbum de Lili Jacob, de 1944, feitas pelas SS durante a recepção de transportes de judeus húngaros em Birkenau, foram comparadas com as fotografias contemporâneas feitas exatamente nos mesmos lugares. Do álbum de Lili Jacob, que contém aproximadamente 200 fotografias, foram selecionadas 31. Representam as diferentes etapas de receção do transporte judeu em Birkenau, desde a chegada à rampa, seleção, divisão entre aptos e não aptos para trabalhar, até às fotos de pessoas levadas ao Holocausto e enviadas para o campo."
Quando nos lugares vazios, ainda que preservados para memória futura, se colocam os fantasmas das pessoas que os percorreram, para além da memória fica também tatuada a dor da sua existência... e é essa dor impressionante que nos aperta o coração ao percorrermos as imagens deste documento.
Fotografias retirados do livro de Piotr M. A. Cywiński e Pawel Sawichi

”Na coluna da direita, a quarta pessoa da esquerda para a direita, na primeira fila, é Lili Jacob”