O litoral Norte da península que se estende entre Vigo e a Corunha é conhecido pelas condições agrestes com que o mar fustiga toda a costa, com registos de naufrágios durante séculos e até aos tempos mais recentes, e que faz com que esta zona seja conhecida como a Costa de la Muerte.
Esta introdução serve apenas para enquadrar a designação que os espanhóis dão a esta zona da Galiza, mas, na verdade, nem sequer estava mau tempo no dia que escolhemos para visitar alguns dos pontos mais notáveis desta zona da costa espanhola.
Estávamos na Galiza em abril de 2022 e não quisemos deixar de visitar o Cabo Finisterra, um símbolo daquela região e uma referência para séculos de história da navegação. Mas, saindo de Santiago de Compostela, resolvemos ainda fazer algumas paragens ao longo do chamado Caminho de Finisterra, o único Caminho de Santiago que é feito no sentido oposto da cidade santa, levando os peregrinos de Santiago até à costa de Finisterra, onde é suposto cumprirem um último ritual de purificação.
Seguimos assim o percurso assinalado neste mapa:
Ponte Maceira
A primeira paragem foi feita a cerca de 20 km de Santiago, num dos pontos de passagem habitual dos peregrinos, a aldeia de Maceira.
A aldeia é bastante bonita e é conhecida pela queda de água que ali se forma à passagem do rio Tambre e, sobretudo, pela belíssima ponte romana que atravessa o rio, composta por cinco arcos principais e dois arcos menores.
Nesta manhã de abril a aldeia estava envolvida por uma espessa camada de neblina, que conferia a este local um aspeto bucólico e quase misterioso.
Fervenza do Ézaro
Após um percurso de cerca de 50 km chegamos a Ézaro e à foz do rio Xallas, depois da albufeira da barragem de Santa Uxia. Do alto da colina que se ergue neste local encontra-se o Miradouro do Ézaro, que nos oferece as belas paisagens do vale que se desenvolve a jusante da barragem, mas, sobretudo, da baía que ali se forma, conhecida como Enseada de Ézaro, mostrando, ao fundo, a silhueta do Cabo Finisterra… com as águas surpreendentemente calmas, neste dia maravilhoso, considerando que aquela zona já faz parte da temida Costa de la Muerte.
Depois de uma descida abrupta por uma estrada em serpentina, chegámos à foz do rio Xallas, que cai sobre uma colina formando uma imensa cascata, que é designada por Fervenza do Ézaro.
Esta queda de água com 40m de altura desemboca na baía de Ézaro e encontra o mar um pouco mais adiante. A cascata fica junto a um pequeno canion que é acessível através de uma curta caminhada por um passadiço de madeira, e que é uma atração muito visitada por turistas.
Cabo Finisterra
Os romanos pensavam que este era o ponto mais ocidental de toda a terra e era aqui, portanto, que o mundo acabava… era o fim da terra ou 'finis-terrae'. Quando os romanos aqui chegaram presenciaram, pela primeira vez, o espetáculo grandioso do pôr-do-sol nas águas do oceano, sobre o mar do fim do mundo, num ambiente que envolveu este local, desde logo, num clima de misticismo, que perdura desde essa época e que ainda hoje se faz sentir.
E, ao longo dos séculos, várias lendas foram associadas a este local, reforçando uma carga mística que surge logo por se tratar simbolicamente de um lugar do fim do mundo, evocando mistérios indecifráveis da alma humana na busca dos desafios do infinito… mas também porque aqui se escondem os segredos da Costa da Morte, com séculos e séculos de naufrágios nunca descobertos.
E há ainda um outro misticismo, este mais cristão, associado ao Caminho de Santiago, que traz os peregrinos num derradeiro percurso vindos da Cidade Santa de Compostela, prolongando mais uns dias a sua caminhada para que, ao chegarem aqui a Finisterra, devolvam as conchas ao mar, entrem nas águas, queimem as roupas e obtenham assim a purificação final, enquanto observam o pôr do-sol, antes do regresso a casa.
São tantas as alusões à imensidão do oceano neste local e à sua ligação macabra com a morte, que a expetativa se torna impressionante… como se o mar não fosse igual em toda esta costa ocidental, de Finisterra a São Vicente.
Até porque, na realidade, o que lá vamos encontrar é apenas mais um farol, sobretudo num dia calmo como este em que não são visíveis quaisquer sinais de um lugar maldito, e foi mesmo um sítio bem simpático e acolhedor que nos recebeu naquela manhã de abril, sem quaisquer vestígios de fim do mundo.
Mas as alusões à morte não deixam de estar presentes, mesmo num dia soalheiro como este, o símbolo de um túmulo que se ergue na encosta da falésia, tira toda a leveza à paisagem e faz-nos sentir um arrepio gélido.
A atração principal deste cabo acontece em dias limpos no final da tarde, com a luz do entardecer a irradiar o horizonte, num pôr-do-sol intenso que nos poderá confundir, se este lugar não será mesmo um reflexo do fim do mundo.
Mas nós não tivemos essa sorte, visitámos o cabo ao final da manhã e perdemos essa parte do espetáculo. Assim, focámo-nos mais nas paisagens e na própria torre do farol, com 17 m de altura e situada a 143 m sobre o nível do mar, emitindo uma luz que vai guiar os navegantes até mais de 23 milhas náuticas. Porém, o alcance dos sinais emitidos por este farol pode não ser suficiente devido ao constante nevoeiro que se faz sentir nos invernos do cabo. Foi por isso que no ano de 1888 foi montada uma sirene, a chamada a Vaca de Finisterra, que permitisse orientar os marinheiros, afastando-os dos perigos existentes, mesmo em dias sem qualquer visibilidade.
Faltava ainda encontrar a alusão ao Caminho de Finisterra, o km 0,000 deste percurso derradeiro para tantos peregrinos que aqui chegam, cheios de fé, ou apenas numa busca interna, refletindo sobre a sua própria existência… no final, encontramos apenas um marco que nos orienta depois de uma longa caminhada, uma outra forma de farol para os nossos sentidos.
Neste dia claro e de águas tranquilas quisemos ainda apreciar a beleza das praias que se formam nas baías protegidas pelo cabo, lindíssimas com os seus areais brancos a águas de azul vivo.
Muxía
Partimos de Finisterra em direção a um dos mais importantes pueblos da Costa da Morte, a vila de Muxía, uma terra que faz parte das tradições ancestrais do Caminho de Santiago que atinge esta zona costeira da Galiza.
A importância que este local tem na tradição jacobeia resulta da lenda que narra um episódio marcante para a história de São Tiago. Na altura em que o Apóstolo pregava o evangelho na chamada Hispânia, e numa fase em que estaria desmoralizado e sem sucesso, pensando mesmo em desistir, surgiu a aparição da Nossa Senhora numa barca de pedra guiada por anjos, que encorajou São Tiago a continuar a sua missão apostólica.
Em 1544 foi construído no local da aparição o Santuário da Nossa Senhora da Barca (Santuario Virxe da Barca), que passou a ser um importante ponto de peregrinação, e também uma atração turística para quem visita o cabo da Punta da Barca, junto à povoação de Muxia.
Por detrás do Santuário e do farol da Punta da Barca, avista-se ao longe o Cabo Vilán, cujo farol marca um dos troços mais perigosos de toda a Costa da Morte, sobretudo pela existência de múltiplos rochedos submersos… apesar do seu aspeto neste dia, aparentemente calmo e pacífico.
Encontramos ainda neste local, junto ao santuário da Virxe da Barca, uma escultura de Alberto Bañuelos-Fournier, chamada 'La Herida', que presta homenagem aos voluntários que ajudaram na limpeza e descontaminação das praias e rochedos afetados pelo desastre ecológico que se verificou no Inverno de 2002, na sequência do naufrágio do navio Prestige.
No dia 13 de novembro de 2002, o petroleiro Prestige foi apanhado por uma tempestade ao largo da costa galega e partiu-se em dois, derramando 42 mil toneladas de crude e criando uma imensa maré negra, deixando uma ferida profunda em todo o litoral da Galiza.
A escultura ‘La Herida’, erguida em setembro de 2003, é composta por duas grandes pedras de granito, formando entre si uma falha que representa uma ferida aberta, atingindo uma altura de 11 metros e pesando 400 toneladas.
A obra foi feita para impedir que este desastre ecológico jamais possa cair no esquecimento, mas é sobretudo uma sentida homenagem aos milhares de voluntários que acorreram ao local para ajudar o povo galego, neste momento tão terrível para esta região e para toda a península.
Saindo do cabo da Punta da Barca e ainda antes de partirmos, visitámos a vila de Muxia, bastante interessante e animada, e encontrámos alguns locais simpáticos na sua envolvente, como é o caso da bonita Praia de Lourido, com a sua areia branca e com as águas de um azul quase turquesa.
Faltava-nos agora um último percurso de cerca de 90 km até chegarmos à capital da província, a cidade da Corunha, que iriamos, entretanto, visitar, deixando definitivamente para trás esta zona tão bonita, cheia de símbolos religiosos e com uma tremenda carga mística.
Carlos Prestes
Abril de 2022