terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Entre Marraquexe e Ouarzazate


Depois da chegada a Marraquexe, a meio da tarde, num avião direto desde Lisboa, e de termos aproveitado esse primeiro serão na cidade vermelha, partimos na manhã seguinte em direção à cordilheira do Alto Atlas. O trajeto era de 200 e poucos quilómetros e levava-nos até à cidade de Ouarzazate passando por algumas das atrações dessa zona.

Mais tarde, no caminho de regresso a Marraquexe, voltaríamos a percorrer a ligação entre estas mesmas cidades, mas desta vez escolhendo um trajeto ligeiramente diferente, com diferentes locais para visitar.

Os percursos efetuados, à ida e no regresso, da nossa viagem ao deserto, seguiram os trilhos e pontos de passagem que aparecem neste mapa
Quando saímos de Marraquexe fizemos um percurso direto até à encosta Norte do Atlas, onde começam a aparecer as primeiras aldeias berberes, onde fomos parando com grande entusiasmo….. talvez pela novidade.
Mais à frente começámos a escalada das encostas do Atlas, um percurso adornado pelas imagens fantásticas das montanhas ainda salpicadas do branco dos últimos nevões.

Continuámos depois, já por estradas de montanha, numa escalada que nos mostrava paisagens com cores que iam mudando sempre, como tantas vezes iria acontecer, e desta vez o tom dominante era o castanho, marcado por linhas brancas dos cordões de neve que se mantinham no topo das encostas.

Chegámos ao ponto mais alto daquela travessia sobre o Atlas, num local que se chama Tizi n'Tichka ou Col du Tichka e que atinge uma altitude de 2.260m, assinalada por um pequeno monumento à beira da estrada.....e pelas bonitas paisagens das montanhas nevadas.

Daí em diante começámos a descida da vertente Sul e escolhemos o trajeto mais a Oeste, ou à esquerda, se olharmos para o mapa. 

Entrámos num vale onde os vermelhos da própria terra e das aldeias voltaram a aparecer, o que nos levou a fazer sucessivas paragens, sem grande propósito que não fosse apreciar a paisagem e tirar fotografias.
Foi assim que percorremos cerca de 50 quilómetros numa estrada com pouquíssimo trânsito, que nos ia levando de aldeia em aldeia, revelando-nos sempre imagens lindíssimas que fomos apreciando e fotografando, sem perder pitada.

A cerca de 25 km do ponto onde iriamos fazer a próxima paragem, desde logo para almoçarmos, mas também para visitarmos o Kasbah Ait Ben-Haddou, o ex-libris desta região, o Ahmed, o nosso motorista, perguntou se queríamos continuar pela estrada pavimentada e percorrer os 25 km que faltavam para o nosso destino, ou se preferíamos seguir a corta-mato, num percurso todo-o-terreno de apenas 6 km, mas por trilhos totalmente inexistentes, confiando na sua perícia e capacidade de orientação. E não hesitámos, até porque o Ahmed é berbere e certamente não se iria perder.

E lá fomos por trilhos mais ou menos radicais, conforme as escolhas do Ahmed ou do próprio jeep. E no meio do nada parámos o carro, saímos e começámos a caminhar…….como quem desafia o deserto.

E este é o tipo de deserto que preenche grande parte do Sul de Marrocos, sem dunas, mas completamente desprovido de vida. Paisagens que nos arrepiam……….e um silêncio quase aterrador.


E talvez para quebrar aquele momento que se prolongava, o Ahmed abriu as portas do jeep, ligou o rádio e aumentou o volume da música marroquina que saía pelas colunas…….e houve logo quem desatasse a dançar freneticamente no meio daquele nenhures……e só para que não fiquem dúvidas, não fui eu nem o Rui.

Aqueles 6 km de todo-o-terreno foram muito mais do que uma pequena aventura…...foram uma forma de nos entregarmos incondicionalmente àquela envolvente, que mais do que marroquina, naquelas paragens, é sobretudo berbere…….povos livres que vivem hoje integrados num país, sob as leis de um monarca, mas que são e continuarão a ser sempre livres. 

Mais à frente encontrámos os primeiros sinais de vida…….um rebanho com um pastor no meio do nada, mas que nos fez sinal de que não queria ser fotografado……..e o Ahmed justificou……é por causa do Facebook e outras redes sociais, não querem que as suas fotos apareçam por lá…….coisa mais bizarra!
Fizemos uma paragem para e almoço tivemos a primeira experiência gastronómica berbere, ao partilharmos os tradicionais tajine e cuscuz, os pratos mais comuns em Marrocos, que acompanhámos com um excelente pão árabe e com uns sumos de laranja, que aqui são muito comuns e bastante saborosos.

Descemos depois até ao rio e entrámos no Kasbah Ait Ben-Haddou, um dos kasbahs mais importantes de todo o país e o único classificado pela UNESCO como património mundial, já desde 1987.
Ait Ben-Haddou era uma cidade fortificada localizada nas margens do rio Ounila, numa antiga rota de caravanas entre o Sahara e Marraquexe. A cidade é constituída por um grupo de várias fortalezas pequenas, todas construídas em adobe, com barro vermelho que marca a tonalidade de toda a antiga cidade. 

A maioria dos habitantes da cidade vive agora numa aldeia mais moderna, do outro lado do rio, e atualmente o kasbah não é mais do que um polo turístico, dos mais afamados de Marrocos, e está preparado para receber os muitos visitantes que por ali passam, com o habitual comércio de rua. 

Quisemos ainda contemplar o kasbah em toda a sua envolvente e por isso voltámos a sair para o leito do rio e contornámos toda a cidade, voltando a entrar por uma porta no lado oposto da entrada principal, e subimos depois até ao alto do monte que se ergue por detrás do aglomerado de casas, conseguindo assim apreciar novas perspetivas da cidade.


A maioria das casas encontram-se num estado de conservação bastante razoável, com os pormenores arquitetónicos ainda bem definidos, apesar do material de construção ser vulnerável aos fenómenos de erosão.

E como o seu estado atual está ainda bem cuidado, o espaço revela uma beleza rara e extraordinária e, talvez por isso, este kasbah tenha sido utilizado tantas vezes para a rodagem de filmes, como o clássico Lawrence da Arábia, a Múmia, o Gladiador ou, o mais recente, Queen of the Desert, entre outros.
Depois de terminarmos a visita, o nosso motorista resolveu uma vez mais levar o jeep para fora de pista e levou-nos até ao topo da colina localizada bem em frente do kasbah, onde pudemos desfrutar de paisagens privilegiadas.
Percorremos 25 km na direção de Ouarzazate e fizemos um pequeno desvio até ao Kasbah Tifoultoute. Um dos muitos kasbahs desta região, o Kasbah Tifoultoute é uma fortaleza que pertenceu à família de Thami El Glaoui, o Pasha Glaoui, um importante líder político de Marrocos da primeira metade do século XX, que era proprietário de um sem-número de palácios e fortificações, algumas deles em muito mau estado.......como acontece com este. 
De qualquer forma o enquadramento do kasbah sobre a colina que se ergue do imenso palmeiral que se estende pelo vale do rio Ouarzazate, é uma imagem bem bonita……sobretudo com as cores de um final de tarde soalheiro, como este.
Seguimos depois até Ouarzazate, onde iríamos pernoitar, e fizemos ainda uma última paragem na principal fortificação e símbolo da cidade, o Kasbah Taourirt, mais um palácio do clã do Pasha Glaoui.

O kasbah foi construído em meados do século XVIII, mas encontra-se em bom estado de conservação e está numa zona da cidade com alguma oferta cultural, integrando um anfiteatro para espetáculos ou eventos ao ar-livre, e junto a uma praça ampla, que valoriza o aspeto da fachada principal do palácio.
Mas a vista mais completa e privilegiada deste kasbah é aquela que enquadra o seu alçado posterior, sobretudo como o encontrámos, ao entardecer, com a luz do sol que se começava a esconder, matizando toda a fachada em tons alaranjados…..mais uma vez o festival das cores que nos acompanha sempre ao longo deste país.
Desta vez fomos diretos para o Riade, o Dar Rita, propriedade da Rita Leitão, a organizadora da nossa viagem, mas uns dias depois, quando regressávamos do Sul, fizemos ainda uma visita ao centro da cidade de Ouarzazate, percorrendo o imenso mercado em torno da sua praça principal, a Place Al-Mouahidine.

Ouarzazate ou War-Zazat, no dialeto berbere, significa "sem barulho", mas a cidade nem é particularmente silenciosa, embora de manhã custe a acordar e já depois das 9h ainda não se via grande movimento de pessoas ou atividade de comércio.....mas os marroquinos são assim, vivem mais intensamente à tarde e à noite do que de manhã (talvez seja uma influência do Ramadão). 

A cidade de Ouarzazate situa-se no sopé das encostas Sul do Alto Atlas, na confluência dos vales dos rios Ouarzazate e Dadés, que se juntam ao maior rio do país, o Draa, a jusante da cidade. É a cidade de transição entre as montanhas do Atlas e o deserto do Sahara, e será a primeira cidade marroquina claramente marcada pela cultura berbere.....e é também conhecida como a capital do Sul.

A principal atração turística da cidade e da região envolvente são os kasbahs que se dispõem pelas montanhas e pelas planícies áridas, ou nos vales e oásis verdejantes. 


No nosso regresso do deserto voltámos a dormir uma noite nesta cidade e, no dia seguinte, o 6º dia da nossa viagem, fizemos o percurso de volta a Marraquexe, mas dessa vez percorremos caminhos distintos e visitámos outras atrações.

Começámos por visitar os Estúdios de Cinema de Ouarzazate, uma das referências desta zona do país. Uma pequena Hollywood marroquina que tem sido palco para a rodagem de várias dezenas de filmes, muitos deles bastante famosos. Sempre que se quer reproduzir o ambiente de um país árabe, atual ou em épocas mais remotas, encontram-se ali, para além das infraestruturas dos próprios estúdios, os locais ideais para se fazerem filmagens…..como os kasbahs, os oásis ou o deserto de dunas, mais a Sul, e as montanhas nevadas do Atlas, um pouco a Norte.

Existem 2 estúdios distintos, embora conectados, o Cinema Studio Atlas e o CLA Studios, o que obriga a duas visitas distintas. O primeiro fica num complexo onde está também um hotel, o Hotel Oscar, numa alusão às estatuetas douradas de Hollywood. Estes estúdios estão apetrechados com uma série de cenários que reproduzem o antigo Egito.
Os CLA Studios incluem duas infraestruturas principais para filmagens. Na primeira existe uma espécie de museu, com peças utilizadas em vários filmes e com aqueles armazéns enormes, um deles com uma grande piscina para filmarem cenas passadas em mar-alto. E foi aí que começámos a nossa visita

Além do preço da entrada, 20 Dh ou 2€, levámos um guia a quem pagaríamos no final em função da sua competência. E o nosso foi bem competente, e bastou um pequeno truque que fez toda a diferença, trazia um tablet e ia-nos mostrando as cenas dos filmes que tinham sido rodados naquele local ou com aquele adereço…….muito giro visto dessa forma, porque, na realidade, os estúdios estão mal tratados e até parecem abandonados e com um aspeto deprimente. Mas estão ainda a ser utilizados e uns dias antes tinham mesmo estado em filmagens. Penso que só nessas alturas é que aqueles espaços adquirem vida……e não fazem por menos, juntando naquele local algumas das principais estrelas do cinema americano.
O terceiro local de filmagens, que pertence aos CLA Studios, é constituído por uma série de cenários que recriam espaços medievais, o que atrai todo o tido de produções passadas nessa época, como é o caso do famosíssimo Game of Thrones, rodado naquele local, como pudemos testemunhar através das imagens que nos foram mostradas no tablet do guia.
Apenas uma referência para a lista imensa dos filmes que ali foram rodados desde os anos 50, contendo alguns épicos, como o Cleópatra ou o Lawrence das Arábias. Mas a mim interessaram-me sobretudo a existência na lista de dois dos meus filmes de referência, o Gladiador, de Ridley Scott, e o Babel, do Alejandro Iñárritu.


À saída dos estúdios seguimos na direção do Atlas, agora escolhendo o trajeto mais a Este, como se representa neste mapa.
Fomos percorrendo caminhos ao longo de vales encaixados em montanhas argilosas com uma tonalidade avermelhada……sempre as cores a dominarem a paisagem……e encontrando aldeias, também elas de um vermelho forte. Em muitos casos as aldeias antigas ficaram degradadas e foram sendo abandonadas na medida em que as pessoas se mudavam para casas novas, e assim foram-se criando as aldeias atuais. 

As paisagens que vamos encontrando são fantásticas, com as duas aldeias, a atual e a antiga já abandonada, com as bonitas montanhas vermelhas e com os verdes dos palmeirais junto às linhas de água.


E ao longo desta estrada não paravam de aparecer sucessivas aldeias berberes, sempre tão pitorescas e tão autênticas, que não hesitávamos em saltar do carro para mais umas fotos.


Além das aldeias berberes, que continuavam a aparecer, as imagens das encostas do Atlas, marcadas pelo branco da neve, começavam a surgir também cada vez mais próximas.


Até que a última destas aldeias era um bocadinho maior que as anteriores, chamava-se Télouet e é conhecida pelo seu kasbah, também denominado por Kasbah do Pacha Glaoui
O kasbah foi construído entre o final do século XIX e o início do século XX junto à vila berbere de Télouet, ocupando uma posição estratégica no Alto Atlas, num lugar de passagem das caravanas comerciais que ligavam o Sahara à costa do mar Mediterrâneo, e também próximo de importantes minas de sal, uma mercadoria que sempre foi valiosa entre as populações do Sul.

Até meio do século XX o kasbah foi um local de grande luxo e riqueza, mas depois disso, com a morte do Pacha, foi abandonado gradualmente e foi ficando repentinamente degradado, parecendo atualmente uma ruína, e mantendo apenas uma pequena amostra da riqueza arquitetónica que continha.
O Pacha Glaoui, também conhecido como o Senhor do Atlas, e já mencionado neste texto sobre outros dois kasbahs em Ouarzazade, que eram também propriedade da sua família, tinha uma quantidade imensa de kasbahs, mas o de Télouet era o seu principal palácio e uma das suas mais importantes fortificações.

Como já referi foi um dos mais célebres líderes políticos de Marrocos da primeira metade do século XX. Foi chefe tribal dos berberes, mas chegou a ser também o Pacha (ou Paxá) da cidade de Marraquexe (uma espécie de sultão, na designação turca-otomana). Chegou a ter grande poder enquanto Pacha de Marraquexe, apoiando os franceses que mantinham o regime de protetorado, e contra quem o rei Mohammed V se opunha. Nessa altura chegou a ser visitado por algumas figuras internacionais de referência, como Winston Churchill ou Charlie Chaplin, que foram recebidos com pompas de estado no seu palácio de Télouet, luxuosíssimo à época, como podemos imaginar pelos detalhes que ainda se mantêm. 

Estas e outras histórias foram-nos contadas pelo guia que nos acompanhou, numa visita à pequena zona do palácio que ainda mantém os traços da riqueza arquitetónica original.

Explicou-nos também que em 1956, exatamente no ano da libertação de Marrocos do protetorado francês, que permitiu o regresso do rei Mohammed V, o Pacha Glaoui morreu de cancro no seu palácio em Télouet. Desde então todo o kasbah entrou em total degradação e, só recentemente, com o regresso ao país de alguns descendentes da família do Pacha, foi possível abrir as visitas ao palácio, reservando-se, dessa forma, o valor das entradas de 20 Dh/pessoa, para futuros trabalhos de reabilitação que vão ser necessários.
Voltámos à estrada, estávamos a 130 km de Marraquexe e, pelo caminho, tínhamos ainda de atravessar o Alto Atlas, de novo no ponto de passagem de Tizi n'Tichka.

Fizemos apenas mais duas paragens durante esse caminho. Uma para visitar um espaço onde pudemos assistir ao processo de fabrico do Óleo de Argan. Um óleo que se obtém da seiva dos frutos, uma espécie de amêndoas, de uma árvore chamada Argania Spinosa. As amêndoas são esmagadas através de pequenas mós de pedra, que vão sendo rodadas pelas mulheres berberes, obtendo-se um óleo que é considerado como um bálsamo para o corpo e para o espírito, com um sem-número de utilizações possíveis.
A outra paragem serviu apenas para um último olhar sobre a beleza das montanhas do Alto Atlas.